Papel
do arquiteto: O projeto arquitetônico como antecipação de um ideal
Postado por Flávia Arruda
A compreensão da profissão do
arquiteto como o projetista de um ideal pode ser esclarecida, em termos
hipotéticos, pela etimologia da palavra arquiteto[1] –
do grego arkhé = princípio, ou na
definição de Jacques Derrida: de onde a ordem é dada; e tektôn = construção. No entanto, atualmente é questionável o papel
do arquiteto como ordenador da forma e espaço a partir do que acredita ser
ideal, na medida em que o mundo se insere em um contexto de multiplicidade. Também
se pode discutir se a produção da arquitetura sempre se pautou em um ideal.
Segundo Elvan Silva, em termos bastante simplificados, pode-se afirmar
que a produção da arquitetura se faz conforme quatros modelos básicos de coletividade:
sociedade primitiva, sociedade intermediária, sociedade organizada e sociedade
complexa. Na sociedade primitiva, a construção do abrigo é uma atribuição do
próprio usuário. Essa sociedade de culturas
inconscientes de si mesmas[2], inexistindo
qualquer noção abstrata de arquitetura como disciplina intelectual autônoma.
A construção do habitat é concretizada segundo um padrão formal e de
acordo com uma técnica devidamente sancionada pela tradição, ou como nas
palavras de Edson Mahfuz a construção do abrigo se realiza a partir de um modelo, “entendido em termos da execução
prática da arquitetura, é um objeto que deve ser repetido como ele é” [3]. Nesse
caso, o modelo do ideal não possui a figura de um autor específico, visto que é
resultado de uma tradição coletiva, em um contexto onde o projeto é dispensável
e inconcebível.
Mesmo com tais particularidades, esse modelo de construção poderia ser
encarado como um ideal, ainda que sugerido ou imposto pela tradição. Nessa
situação, o ideal não é questionado pelos usuários, dado que geralmente os
meios de edificação são limitados e bem conhecidos.
Na sociedade intermediária aparece a figura do construtor, que substitui
o usuário em condições de eximir-se da tarefa edificatória. Ao construtor
compete conceber e executar a obra, em consonância com o modelo que é comum às
duas partes envolvidas. O projeto, nesta hipótese, é dispensável, embora possa
ser cogitado como forma de aperfeiçoamento do processo de comunicação entre o
usuário e o construtor. Nesse estágio, o construtor não exerce tanto sua
atividade criativa, visto que ainda segue um modelo.
No caso da sociedade organizada a divisão do trabalho e o grau de
hierarquização da sociedade são mais nítidos, a especialização profissional é
maior e a definição de competências difere o projetista do executor da obra,
assim há a separação entre concepção e execução. Aqui, já que desaparecem os
modelos e estereótipos, prevalece a vontade e a individualidade do projetista,
podendo supor que o ideal buscado é mais individual do que coletivo, ao
contrário do que acontecia nos estágios anteriores.
Já no enfoque da sociedade complexa, a tarefa edificatória adquire maior
complexidade, em que além da ação intermediária do arquiteto e do construtor,
passa a ter a intervenção do corpo burocrático, assim o projeto também assume a
função de documento, além da função de registro. Nesse estágio, o usuário, o
arquiteto e o construtor são pessoas distintas, com ideais próprios, nem sempre
convergentes, assim se verifica que a liberdade de contribuição do construtor
tende a ser suprimida, em nome da integridade da concepção do arquiteto.
Mais questionável do que a busca pela concretização de um ideal no plano
da arquitetura, é a mesma busca no planejamento urbanístico, visto que é responsável
pela concepção de um espaço/lugar que interfere no bem-estar social. A busca de
um ideal no plano da cidade, por se ocupar de uma escala maior, torna a questão
mais controversa. Planejar uma cidade é traçar o rumo da ação, mas até onde uma
equipe de arquitetos/urbanistas pode definir o que é ideal ou não? Imagina-se
que muito além do conhecimento técnico, tem de haver uma enorme preparação
cultural para qualquer nível de intervenção.
A solução ideal não existe, porém ao menos em uma proposta deveria ser respeitado
a tectônica existente; por isso, pensamentos dominados por uma idéia de ordem,
uniformidade e extremo idealismo não conseguem assimilar o preexistente, viram
modelos neuróticos. Um exemplo está no pensamento urbano dos anos de 1950, que
não aceitava a aglomeração caótica das favelas, situação só começou a mudar com
a experiência precursora no Brasil de Carlos Nelson Ferreira dos Santos.
Como diria Ruth Verde Zein[4], o
espírito do tempo que reflete a valorização do multiculturalismo abre espaço
para a idéia de diferentes maneiras de entender a cidade e, sem dúvida,
influencia a própria sensibilidade plástica da época, que valoriza o diverso, o
fragmento, a multiplicidade. Heráclito de Éfeso, já dizia com seu célebre
aforismo Panta rei os potamós, traduzido como "Tudo flui como um
rio", admitindo a idéia de multiplicidade, onde nada é eterno, tudo de
modifica.
[1] O
estudo etimológico será sempre um procedimento correto para a elucidação de
questões relativas à forma e ao emprego das palavras. SILVA, Elvan. Uma introdução ao projeto arquitetônico.
Porto Alegre: Ed. da Universidade, UFRGS; Brasília: MEC/SESu/PROED, 1983, p.
30.
[2]
ALEXANDER, Christopher. “Ensayo sobre la síntesis de la forma”. Buenos Aires,
Infinito, 1971, apud Idem, p. 17.
[3] MAHFUZ, E. C. Nada provém do nada - A produção da arquitetura vista como
transformação de conhecimento. Disponível em: <http://www.fau.ufrj.br/prolugar/arq_pdf/dissertacoes/Dissert_Arthur%20tavares_2005/CAP1_a%20evolu%E7%E3o%20do%20conceito%20de%20tipo.pdf>
[4] BASTOS,
Maria Alice Junqueira; ZEIN, Ruth Verde. Brasil:
Arquitetura após 1950. São Paulo:
perspectiva, 2010.
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