postado por Taís R. de Souza Tostes
Na “Segunda Reunião de
Darmastad”, o filósofo alemão Martin Heidegger – professor de Hannah Arendt publicou um artigo, um manifesto sobre o exercício
do pensamento – e como está entrelaçado com o ato de construir e habitar. Na
realidade, os três – construir, habitar, pensar, que intitulam o artigo –
possuem uma relação vital. Por esse motivo, segue um trecho que trás para nós,
no papel de estudantes de arquitetura e urbanismo e também habitantes de um
coletivo, que transmite o importante entrelace do pensamento ao ato da criação.
Construir, Habitar,
Pensar
Martin Heidegger
“Quando se fala do homem
e do espaço, entende-se que o homem está de um lado e o espaço de outro. O
espaço, porém, não é algo que se opõe ao homem. O espaço nem é um objeto
exterior e nem uma vivência interior. Não existem homens e, além deles, espaço.
Ao se dizer "um homem" e ao se pensar nessa palavra aquele que é no
modo humano, ou seja, que habita já se pensa imediatamente no nome
"homem" [...] junto às coisas. Mesmo quando nos relacionamos com
coisas que não se encontram numa proximidade estimável, demoramo-nos junto às
coisas elas mesmas. O que fazemos não é simplesmente representar, como se
costuma ensinar, dentro de nós coisas distantes, deixando passar em nosso
interior e na nossa cabeça representações como sucedâneos das coisas distantes.
Se agora - nós todos - lembrarmos em pensamento da antiga ponte de Heidelberg,
esse levar o pensamento a um lugar não é meramente uma vivência das pessoas
aqui presentes.
Ponte Antiga de Heidelberg
Na verdade, pertence à essência desse nosso pensar sobre essa
ponte o fato de o pensamento poder ter sobre si a distância relativa a esse
lugar. A partir desse momento em que pensamos, estamos juntos daquela ponte lá
e não junto a um conteúdo de representação armazenado em nossa consciência.
Daqui podemos até mesmo estar bem mais próximos dessa ponte e do espaço que ela
dá e arruma do que alguém que a utiliza diariamente como um meio indiferente de
atravessar os espaços e, com eles, "o" espaço, já sempre encontraram
um espaço na demora dos mortais. Os espaços abrem-se pelo fato de serem
admitidos no habitar do homem. Os mortais são, isso significa: em habitando têm
sobre si espaços em razão de sua demora junto às coisas e aos lugares. Ε
somente porque os mortais têm sobre si o seu ser de acordo com os espaços é que
podem atravessar espaços. Atravessando, não abrimos mão desses “ter sobre si”.
Ao contrário. Sempre atravessamos espaços de maneira que já os temos sobre nós
ao longo de toda travessia, uma vez que sempre nos demoramos junto a lugares
próximos e distantes, junto às coisas. Quando começo a atravessar a sala em
direção à saída, já estou lá na saída. Não me seria possível percorrer a sala
se eu não fosse de tal modo que sou aquele que está lá. Nunca estou somente
aqui como um corpo encapsulado, mas estou lá, ou seja, tendo sobre mim o
espaço. É somente assim que posso percorrer um espaço. [...]
Quando nos recolhemos - como se diz - dentro
de nós mesmos, é a partir das coisas que chegamos dentro de nós, ou seja, sem
abrir mão da demora junto às coisas. Mesmo a falta de contato com as coisas,
que sucede em estados depressivos, não seria possível se esse estado não
continuasse a ser um estado caracteristicamente humano, ou seja, ainda assim
uma demora junto às coisas. Somente porque essa demora determina o ser homem é
que as coisas podem não nos tocar e nada nos dizer. A referência do homem aos
lugares e através dos lugares aos espaços repousa no habitar. A relação entre homem
e espaço nada mais é do que um habitar pensado de maneira essencial. Nessa
tentativa de pensar atentamente tanto a relação entre lugar e espaço como
também o relacionamento entre homem e espaço, essência das coisas, que são
lugares e que chamamos de coisas construídas, ganha uma luz. [...].
Dar espaço no sentido de
deixar ser e dar espaço no sentido de edificar se pertencem mutuamente. [...]
Coisas semelhantes a esses lugares dão moradia à demora dos homens. Coisas
semelhantes a esses lugares são moradias, mas não necessariamente habitações,
em sentido estrito. Produzir tais coisas é construir. Sua essência consiste em
corresponder à espécie dessas coisas. As coisas são lugares que propiciam
espaços. Construir é edificar lugares. Por isso, construir é um fundar e
articular espaços. Construir é produzir espaços. O construir, porém, nunca
configura "o" espaço. Nem de forma imediata, nem de forma mediata.
Assim é que, por produzir coisas como lugares, o construir está mais próximo da
essência dos espaços e da proveniência essencial "do" espaço do que
toda geometria e matemática. Construir significa edificar lugares que propiciam
estância e circunstância à quadratura. O construir assim caracterizado é um
deixar-habitar privilegiado. [...] Quando se tenta pensar a essência do
construir que edifica com base num deixar-habitar, faz-se uma experiência mais
clara do que seja o produzir em que se consuma e plenifica o construir.
Costumamos considerar que produzir é uma atividade cujos procedimentos devem
alcançar um resultado, a saber, a construção acabada. Essa é, sem dúvida, uma
representação possível do que seja produzir. Com ela pode-se apreender
corretamente o que seja produzir, mas não se consegue encontrar a essência do
produzir. Em sua essência, produzir é conduzir para diante de..., é pró-duzir.
A essência de construir
é deixar-habitar. A plenitude de essência é o edificar lugares mediante a
articulação de seus espaços. Somente em
sendo capazes de habitar é que podemos construir. [...] Quem sabe se nessa tentativa
de concentrar o pensamento no que significa habitar e construir torne-se mais
claro que ao habitar pertence um construir e que dele recebe a sua essência. Já
é um enorme ganho se habitar e construir tornarem-se dignos de se questionar e,
assim, permanecerem dignos de se pensar.
O caminho de pensamento
aqui ensaiado deve testemunhar, por outro lado, que o pensar, assim como o
construir, pertence ao habitar, se bem que de modo diverso. Construir e pensar
são, cada um a seu modo, indispensáveis para o habitar. Ambos são, no entanto,
insuficientes para o habitar se cada um se mantiver isolado, cuidando do que é
seu ao invés de escutar um ao outro. Essa escuta só acontece se ambos,
construir e pensar pertence ao habitar, permanecem em seus limites e sabem que
tanto um como outro provém da obra de uma longa experiência e de um exercício
incessante.
Buscamos concentrar o
pensamento na essência do habitar. O passo seguinte, nesse sentido, seria
perguntar: o que acontece com o habitar nesse nosso tempo que tanto dá a
pensar? Fala-se por toda parte e com razão de crise habitacional. Ε não apenas
se fala, mas se põe a mão na massa. Tenta-se suplantar a crise através da
criação de conjuntos habitacionais, incentivando-se a construção habitacional
mediante um planejamento de toda a questão habitacional. Por mais difícil e
angustiante, por mais avassaladora e ameaçadora que seja a falta de habitação,
a crise propriamente dita do habitar não se encontra, primordialmente, na falta
de habitações. A crise propriamente dita de habitação é, além disso, mais
antiga do que as guerras mundiais e as destruições, mais antiga também do que o
crescimento populacional na terra e a situação do trabalhador industrial. A
crise propriamente dita do habitar consiste em que os mortais precisam sempre
de novo buscar a essência do habitar, consiste em que os mortais devem primeiro
aprender a habitar. Ε se o desenraizamento do homem fosse precisamente o fato
de o homem não pensar de modo algum a crise habitacional propriamente dita como
a crise? Tão logo, porém, o homem pensa o desenraizamento, este deixa de ser
uma miséria. Rigorosamente pensado e bem resguardado, o desenraizamento é o
único apelo que convoca os mortais para um habitar.
De que outro modo,
porém, os mortais poderiam corresponder a esse apelo senão tentando, na parte
que lhes cabe, conduzir o habitar a partir de si mesmo até a plenitude de sua
essência? Isso eles fazem plenamente construindo a partir do habitar e pensando
em direção ao habitar.”
Para finalizar, essa imagem do
artista gráfico Mattias Adolfsson, que se relaciona com um dos questionamentos
feitos durante o texto de Heidegger. Um homem, um ser, feito de construções,habitações.
Afinal, o que somos nós senão seres habitados pelo mundo – ou seres que
habitam?
Referência:
H.,Martin
– Construir,Habitar,Pensar – 1951.
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