sábado, 10 de dezembro de 2011

Eu habito, tu habitas, nós pensamos


postado por Taís R. de Souza Tostes

Na “Segunda Reunião de Darmastad”, o filósofo alemão Martin Heidegger – professor de Hannah Arendt publicou um artigo, um manifesto sobre o exercício do pensamento – e como está entrelaçado com o ato de construir e habitar. Na realidade, os três – construir, habitar, pensar, que intitulam o artigo – possuem uma relação vital. Por esse motivo, segue um trecho que trás para nós, no papel de estudantes de arquitetura e urbanismo e também habitantes de um coletivo, que transmite o importante entrelace do pensamento ao ato da criação.

Construir, Habitar, Pensar
Martin Heidegger

“Quando se fala do homem e do espaço, entende-se que o homem está de um lado e o espaço de outro. O espaço, porém, não é algo que se opõe ao homem. O espaço nem é um objeto exterior e nem uma vivência interior. Não existem homens e, além deles, espaço. Ao se dizer "um homem" e ao se pensar nessa palavra aquele que é no modo humano, ou seja, que habita já se pensa imediatamente no nome "homem" [...] junto às coisas. Mesmo quando nos relacionamos com coisas que não se encontram numa proximidade estimável, demoramo-nos junto às coisas elas mesmas. O que fazemos não é simplesmente representar, como se costuma ensinar, dentro de nós coisas distantes, deixando passar em nosso interior e na nossa cabeça representações como sucedâneos das coisas distantes. Se agora - nós todos - lembrarmos em pensamento da antiga ponte de Heidelberg, esse levar o pensamento a um lugar não é meramente uma vivência das pessoas aqui presentes. 

                                          Ponte Antiga de Heidelberg


Na verdade, pertence à essência desse nosso pensar sobre essa ponte o fato de o pensamento poder ter sobre si a distância relativa a esse lugar. A partir desse momento em que pensamos, estamos juntos daquela ponte lá e não junto a um conteúdo de representação armazenado em nossa consciência. Daqui podemos até mesmo estar bem mais próximos dessa ponte e do espaço que ela dá e arruma do que alguém que a utiliza diariamente como um meio indiferente de atravessar os espaços e, com eles, "o" espaço, já sempre encontraram um espaço na demora dos mortais. Os espaços abrem-se pelo fato de serem admitidos no habitar do homem. Os mortais são, isso significa: em habitando têm sobre si espaços em razão de sua demora junto às coisas e aos lugares. Ε somente porque os mortais têm sobre si o seu ser de acordo com os espaços é que podem atravessar espaços. Atravessando, não abrimos mão desses “ter sobre si”. Ao contrário. Sempre atravessamos espaços de maneira que já os temos sobre nós ao longo de toda travessia, uma vez que sempre nos demoramos junto a lugares próximos e distantes, junto às coisas. Quando começo a atravessar a sala em direção à saída, já estou lá na saída. Não me seria possível percorrer a sala se eu não fosse de tal modo que sou aquele que está lá. Nunca estou somente aqui como um corpo encapsulado, mas estou lá, ou seja, tendo sobre mim o espaço. É somente assim que posso percorrer um espaço. [...]
 Quando nos recolhemos - como se diz - dentro de nós mesmos, é a partir das coisas que chegamos dentro de nós, ou seja, sem abrir mão da demora junto às coisas. Mesmo a falta de contato com as coisas, que sucede em estados depressivos, não seria possível se esse estado não continuasse a ser um estado caracteristicamente humano, ou seja, ainda assim uma demora junto às coisas. Somente porque essa demora determina o ser homem é que as coisas podem não nos tocar e nada nos dizer. A referência do homem aos lugares e através dos lugares aos espaços repousa no habitar. A relação entre homem e espaço nada mais é do que um habitar pensado de maneira essencial. Nessa tentativa de pensar atentamente tanto a relação entre lugar e espaço como também o relacionamento entre homem e espaço, essência das coisas, que são lugares e que chamamos de coisas construídas, ganha uma luz. [...].
Dar espaço no sentido de deixar ser e dar espaço no sentido de edificar se pertencem mutuamente. [...] Coisas semelhantes a esses lugares dão moradia à demora dos homens. Coisas semelhantes a esses lugares são moradias, mas não necessariamente habitações, em sentido estrito. Produzir tais coisas é construir. Sua essência consiste em corresponder à espécie dessas coisas. As coisas são lugares que propiciam espaços. Construir é edificar lugares. Por isso, construir é um fundar e articular espaços. Construir é produzir espaços. O construir, porém, nunca configura "o" espaço. Nem de forma imediata, nem de forma mediata. Assim é que, por produzir coisas como lugares, o construir está mais próximo da essência dos espaços e da proveniência essencial "do" espaço do que toda geometria e matemática. Construir significa edificar lugares que propiciam estância e circunstância à quadratura. O construir assim caracterizado é um deixar-habitar privilegiado. [...] Quando se tenta pensar a essência do construir que edifica com base num deixar-habitar, faz-se uma experiência mais clara do que seja o produzir em que se consuma e plenifica o construir. Costumamos considerar que produzir é uma atividade cujos procedimentos devem alcançar um resultado, a saber, a construção acabada. Essa é, sem dúvida, uma representação possível do que seja produzir. Com ela pode-se apreender corretamente o que seja produzir, mas não se consegue encontrar a essência do produzir. Em sua essência, produzir é conduzir para diante de..., é pró-duzir.
A essência de construir é deixar-habitar. A plenitude de essência é o edificar lugares mediante a articulação de seus espaços.  Somente em sendo capazes de habitar é que podemos construir. [...] Quem sabe se nessa tentativa de concentrar o pensamento no que significa habitar e construir torne-se mais claro que ao habitar pertence um construir e que dele recebe a sua essência. Já é um enorme ganho se habitar e construir tornarem-se dignos de se questionar e, assim, permanecerem dignos de se pensar.
O caminho de pensamento aqui ensaiado deve testemunhar, por outro lado, que o pensar, assim como o construir, pertence ao habitar, se bem que de modo diverso. Construir e pensar são, cada um a seu modo, indispensáveis para o habitar. Ambos são, no entanto, insuficientes para o habitar se cada um se mantiver isolado, cuidando do que é seu ao invés de escutar um ao outro. Essa escuta só acontece se ambos, construir e pensar pertence ao habitar, permanecem em seus limites e sabem que tanto um como outro provém da obra de uma longa experiência e de um exercício incessante.
Buscamos concentrar o pensamento na essência do habitar. O passo seguinte, nesse sentido, seria perguntar: o que acontece com o habitar nesse nosso tempo que tanto dá a pensar? Fala-se por toda parte e com razão de crise habitacional. Ε não apenas se fala, mas se põe a mão na massa. Tenta-se suplantar a crise através da criação de conjuntos habitacionais, incentivando-se a construção habitacional mediante um planejamento de toda a questão habitacional. Por mais difícil e angustiante, por mais avassaladora e ameaçadora que seja a falta de habitação, a crise propriamente dita do habitar não se encontra, primordialmente, na falta de habitações. A crise propriamente dita de habitação é, além disso, mais antiga do que as guerras mundiais e as destruições, mais antiga também do que o crescimento populacional na terra e a situação do trabalhador industrial. A crise propriamente dita do habitar consiste em que os mortais precisam sempre de novo buscar a essência do habitar, consiste em que os mortais devem primeiro aprender a habitar. Ε se o desenraizamento do homem fosse precisamente o fato de o homem não pensar de modo algum a crise habitacional propriamente dita como a crise? Tão logo, porém, o homem pensa o desenraizamento, este deixa de ser uma miséria. Rigorosamente pensado e bem resguardado, o desenraizamento é o único apelo que convoca os mortais para um habitar.
De que outro modo, porém, os mortais poderiam corresponder a esse apelo senão tentando, na parte que lhes cabe, conduzir o habitar a partir de si mesmo até a plenitude de sua essência? Isso eles fazem plenamente construindo a partir do habitar e pensando em direção ao habitar.”

Para finalizar, essa imagem do artista gráfico Mattias Adolfsson, que se relaciona com um dos questionamentos feitos durante o texto de Heidegger. Um homem, um ser, feito de construções,habitações. Afinal, o que somos nós senão seres habitados pelo mundo – ou seres que habitam?



Referência:
H.,Martin – Construir,Habitar,Pensar – 1951.

Nenhum comentário:

Postar um comentário