segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

4_ARQUITETO COMO ETNÓGRAFO_um esboço cartográfico no Centro de Vitória



Pescador - Avenida Jerônimo Monteiro - Centro de Vitória
Lavadeiras - escadaria do Palácio Anchieta - Centro de Vitória

















A incitação inicial para esse esboço cartográfico recaiu sobre a constatação de um relativo empobrecimento da experiência corporal urbana, certa esterilização dos sentidos e robotização das ações, determinados por fluxos concernentes às exigências do capital na cidade. Para o desenvolvimento do trabalho era preciso, inicialmente, identificar como a cidade se inscreve nos corpos e como esses corpos deixam marcas nos espaços, numa configuração mútua.

Para tanto, pensamos em nos utilizar da dança como instrumento de análise e ação, uma vez que ela lida diretamente com o corpo em movimento e suas implicações com o espaço e outros corpos. Ela também aponta caminhos quando se utiliza criativamente da atualização do projeto coreográfico pelos corpos dos bailarinos e incorpora em seu próprio processo de concepção os processos de subjetivação. Por meio da leitura e interpretação dos movimentos do corpo cotidiano/ordinário e sua posterior adaptação coreográfica, a dança se posiciona potencialmente de maneira crítica, na medida em que provoca certos deslocamentos na percepção.

Cogitamos formas de utilizar a dança, sem que essa ganhasse contornos espetaculares que apenas despertasse curiosidade, tornando-se evento observado passivamente à distância, impossibilitando a implicação tanto de nossa parte, como grupo de trabalho, como daqueles que passassem pelo local escolhido. Desejávamos tornarmos parte do mesmo processo, nos (re) modelando a partir das reações dos outros corpos e disposições dos espaços e fluxos.

Abrimos a possibilidade de utilizar-nos de nossos próprios corpos, não necessariamente com a dança, mas com ações performáticas que causassem interferências e provocassem a experiência de estranhamento e perturbação dos modos de funcionamento produzidos naquele contexto. Pensamos, portanto, em algumas alternativas ou desvios possíveis à lógica que engendra o espetáculo urbano.

Aqui, utilizamos o texto de Paola Berenstein Jacques (2008), em que a autora desenvolve o conceito de espetáculo como conseqüência de um processo de estetização acrítico e segregador, em que se reduz a participação cidadã na constituição da cidade e a relação entre as duas instâncias passa a ser mais distante, marcada por uma transitoriedade e superficialidade, na medida em que a cidade passa a ser um espaço pelo qual as pessoas transitam, sem constituí-la de fato.

Em contrapartida a esse processo, pensa-se a corporalidade como uma co-adaptação da cidade e do corpo, sendo que dessa forma os dois lados da relação interagem de forma mais intensa e ativa. Aqui, os estudos das relações entre corpo e cidade apontam possibilidades outras e linhas de fuga ao processo de espetacularização e o conseqüente entorpecimento diante de uma cidade que se apresenta como cenário intangível.

Dispusemo-nos então, a elaborar projeções ou territórios antagônicos como resposta às experiências que vivenciamos em nossas idas ao Centro e mais especificamente nos locais escolhidos (Avenida Jerônimo Monteiro e escadarias do Palácio Anchieta). Essas projeções, que através da performance, se configurariam como uma forma de micro-resistência ao processo de pacificação dos espaços públicos, ganhariam visibilidade por negação na medida em que procuram se inserir, não como parte do “espetáculo urbano”, mas sim, como meio de construção de dissensos e desvelamento de conflitos. A idéia de resistência aqui é pensada em termos de desacordo, desentendimento; e o dissenso, como possibilidade de se opor um mundo sensível a um outro, algo contra a homogeneização consensual.

Nossas proposições, por menos pretensiosas que procuravam ser, ao empreenderem uma crítica ao espetáculo pacificador, se colocavam como parte desse processo de espetacularização, uma vez que resistência e espetáculo são duas esferas que não somente coexistem nas cidades, mas também estão sempre co-implicadas. E essa crítica só poderia ser de fato tensionadora e problematizadora de dentro do próprio processo, mas em outra escala ou registro, em forma de infiltração, de pequenos desvios, ações moleculares, ou seja, enquanto micro-resistência.

Dessa forma, sem prescindir ao corpo cotidiano no espaço urbano, ou a corporeidade dos homens lentos (segundo Milton Santos), que praticam a “outra cidade” opaca, intensa e viva que se insinua nas brechas da cidade espetacularizada, partimos para a identificação desses praticantes ordinários e esboçamos ações performáticas que remetessem a hábitos e ações que outrora ocorriam onde a baia avançava e que hoje, em função dos aterros, aberturas de grandes vias e processos de verticalização, foram extintos ou relegados às margens pelo fluxo predominante de veículos, pessoas e o bloqueio visual produzido pelos altos edifícios.

A performance das "Lavadeiras" nas escadarias do Palácio Anchieta foi uma tentativa de contrastar por meio das cores e da própria ação, a vitalidade popular de uma prática que possui uma dimensão coletiva e compartilhada mas que frente a predominância de uma lógica de privatização dos espaços comuns, se retrai contra a “desordem das ruas”. Esse contraste também incide sobre o ordenamento e assepsia ao qual esse espaço foi submetido, uma vez que ao tornar-se um local emblemático e símbolo do poder governamental do estado, implicou, dentro da lógica espetacular, em processos de gentrificação conduzidos pelos sucessivos projetos urbanos de “revitalização”.



A performance do "Pescado" num bueiro de um ponto nevrálgico da Avenida Jerônimo Monteiro,  segue o mesmo raciocínio. Essa performance trouxe mais surpresas por ter possibilitado uma maior interação com os passantes, que se aproximavam para tecer comentários, indagar, ou simplesmente demonstrar estranhamento e suspeita. A questão da pesca é ainda mais forte ali, já que há poucos metros, à beira mar, pescadores e catraieros “jogam com um espaço que não vêe; tem dele um conhecimento tão cego como o corpo-a-corpo amoroso” (DE CERTEAU, M.,1996,P.171). Esses homens lentos têm o corpo como uma certeza materialmente sensível e são aqueles “para quem as imagens são miragens, não podem, por muito tempo estar em fase com esse imaginário perverso e acabam descobrindo suas fabulações” (SANTOS, M.,1996, P.261)


Segundo Paola Berenstein, ações artísticas críticas na cidade contemporânea buscam ocupar, profanar, apropriar-se do espaço público para construir e propor outras experiências sensíveis e, assim, perturbar essa imagem tranqüilizadora e pacificada do espaço público que o espetáculo do consenso tenta forjar. Nessas ações que buscam um escape da hegemonia das imagens consensuais, a questão do uso e do corpo são prioritárias, em particular, a experiência corporal urbana, determinante para manter uma tensão permanente no espaço público.




Trabalho realizado durante a disciplina optativa de Urbanismo e Subjetividade, ministrada pelo professor Sérgio Prucoli

Grupo de trabalho: André Azoury, Bárbara Veronez e Carol Alves Lima

[referências]

DE CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1 artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes,
1996.


GUIZZO, I. Micropolíticas Urbanas: uma aposta na cidade expressiva. 2008. Tese de mestrado apresentada à Universidade Federal Fluminense.


JACQUES, P. B. Corpografias Urbanas. IV ENECULT - Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura. 28 a 30 de maio de 2008. Faculdade de Comunicação/UFBa, Salvador-Bahia-Brasil.


JACQUES, P. B. Zonas de Tensão. Corpocidade:debates, ações e articulações, Salvador: EDUFBA, 2010


ROLNIK, S. Cartografia Sentimental, Transformações contemporâneas do desejo. 1989. Editora Estação Liberdade, São Paulo.


SANTOS, M. A natureza do espaço, técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo:
Hucitec, 1996.

Postado por Bárbara Veronez

Nenhum comentário:

Postar um comentário