Pescador - Avenida Jerônimo Monteiro - Centro de Vitória |
Lavadeiras - escadaria do Palácio Anchieta - Centro de Vitória |
A incitação inicial para esse esboço cartográfico recaiu
sobre a constatação de um relativo empobrecimento da experiência corporal
urbana, certa esterilização dos sentidos e robotização das ações, determinados por
fluxos concernentes às exigências do capital na cidade. Para o desenvolvimento
do trabalho era preciso, inicialmente, identificar como a cidade se inscreve
nos corpos e como esses corpos deixam marcas nos espaços, numa configuração
mútua.
Para tanto,
pensamos em nos utilizar da dança como instrumento de análise e ação, uma vez
que ela lida diretamente com o corpo em movimento e suas implicações com o
espaço e outros corpos. Ela também aponta caminhos quando se utiliza
criativamente da atualização do projeto coreográfico pelos corpos dos
bailarinos e incorpora em seu próprio processo de concepção os processos de
subjetivação. Por meio da leitura e interpretação dos movimentos do corpo
cotidiano/ordinário e sua posterior adaptação coreográfica, a dança se
posiciona potencialmente de maneira crítica, na medida em que provoca certos
deslocamentos na percepção.
Cogitamos formas
de utilizar a dança, sem que essa ganhasse contornos espetaculares que apenas
despertasse curiosidade, tornando-se evento observado passivamente à distância,
impossibilitando a implicação tanto de nossa parte, como grupo de trabalho,
como daqueles que passassem pelo local escolhido. Desejávamos tornarmos parte
do mesmo processo, nos (re) modelando a partir das reações dos outros corpos e
disposições dos espaços e fluxos.
Abrimos a
possibilidade de utilizar-nos de nossos próprios corpos, não necessariamente
com a dança, mas com ações performáticas que causassem interferências e
provocassem a experiência de estranhamento e perturbação dos modos de
funcionamento produzidos naquele contexto. Pensamos, portanto, em algumas
alternativas ou desvios possíveis à lógica que engendra o espetáculo urbano.
Aqui, utilizamos o texto de Paola Berenstein Jacques
(2008), em que a autora desenvolve o conceito de espetáculo como conseqüência
de um processo de estetização acrítico e segregador, em que se reduz a
participação cidadã na constituição da cidade e a relação entre as duas
instâncias passa a ser mais distante, marcada por uma transitoriedade e
superficialidade, na medida em que a cidade passa a ser um espaço pelo qual as
pessoas transitam, sem constituí-la de fato.
Em contrapartida a esse processo, pensa-se a
corporalidade como uma co-adaptação da cidade e do corpo, sendo que dessa forma
os dois lados da relação interagem de forma mais intensa e ativa. Aqui, os
estudos das relações entre corpo e cidade apontam possibilidades outras e linhas
de fuga ao processo de espetacularização e o conseqüente entorpecimento diante
de uma cidade que se apresenta como cenário intangível.
Dispusemo-nos
então, a elaborar projeções ou territórios antagônicos como resposta às
experiências que vivenciamos em nossas idas ao Centro e mais especificamente
nos locais escolhidos (Avenida Jerônimo Monteiro e escadarias do Palácio Anchieta). Essas projeções, que através da performance, se
configurariam como uma forma de micro-resistência ao processo de pacificação
dos espaços públicos, ganhariam visibilidade por negação na medida em que
procuram se inserir, não como parte do “espetáculo urbano”, mas sim, como meio
de construção de dissensos e desvelamento de conflitos. A idéia de resistência
aqui é pensada em termos de desacordo, desentendimento; e o dissenso, como
possibilidade de se opor um mundo sensível a um outro, algo contra a
homogeneização consensual.
Nossas proposições, por menos pretensiosas que procuravam
ser, ao empreenderem uma crítica ao espetáculo pacificador, se colocavam
como parte desse processo de espetacularização, uma vez que resistência e espetáculo
são duas esferas que não somente coexistem nas cidades, mas também estão sempre
co-implicadas. E essa crítica só poderia ser de fato tensionadora e
problematizadora de dentro do próprio processo, mas em outra escala ou
registro, em forma de infiltração, de pequenos desvios, ações moleculares, ou
seja, enquanto micro-resistência.
Dessa forma, sem prescindir ao corpo cotidiano no espaço
urbano, ou a corporeidade dos homens lentos (segundo Milton Santos), que praticam
a “outra cidade” opaca, intensa e viva que se insinua nas brechas da cidade
espetacularizada, partimos para a identificação desses praticantes ordinários e
esboçamos ações performáticas que remetessem a hábitos e ações que outrora
ocorriam onde a baia avançava e que hoje, em função dos aterros, aberturas de
grandes vias e processos de verticalização, foram extintos ou relegados às
margens pelo fluxo predominante de veículos, pessoas e o bloqueio visual
produzido pelos altos edifícios.
A performance das "Lavadeiras" nas escadarias do Palácio Anchieta foi uma tentativa de contrastar por meio das cores e da própria ação, a vitalidade popular de uma prática que possui uma dimensão coletiva e compartilhada mas que frente a predominância de uma lógica de privatização dos espaços comuns, se retrai contra a “desordem das ruas”. Esse contraste também incide sobre o ordenamento e assepsia ao qual esse espaço foi submetido, uma vez que ao tornar-se um local emblemático e símbolo do poder governamental do estado, implicou, dentro da lógica espetacular, em processos de gentrificação conduzidos pelos sucessivos projetos urbanos de “revitalização”.
A performance do "Pescado" num bueiro de um ponto nevrálgico da Avenida Jerônimo Monteiro, segue o mesmo raciocínio. Essa performance trouxe mais surpresas por ter possibilitado uma maior interação com os passantes, que se aproximavam para tecer comentários, indagar, ou simplesmente demonstrar estranhamento e suspeita. A questão da pesca é ainda mais forte ali, já que há poucos metros, à beira mar, pescadores e catraieros “jogam com um espaço que não vêe; tem dele um conhecimento tão cego como o corpo-a-corpo amoroso” (DE CERTEAU, M.,1996,P.171). Esses homens lentos têm o corpo como uma certeza materialmente sensível e são aqueles “para quem as imagens são miragens, não podem, por muito tempo estar em fase com esse imaginário perverso e acabam descobrindo suas fabulações” (SANTOS, M.,1996, P.261)
Segundo Paola Berenstein, ações artísticas críticas na cidade contemporânea buscam ocupar, profanar, apropriar-se do espaço público para construir e propor outras experiências sensíveis e, assim, perturbar essa imagem tranqüilizadora e pacificada do espaço público que o espetáculo do consenso tenta forjar. Nessas ações que buscam um escape da hegemonia das imagens consensuais, a questão do uso e do corpo são prioritárias, em particular, a experiência corporal urbana, determinante para manter uma tensão permanente no espaço público.
Trabalho realizado durante a disciplina optativa de Urbanismo e Subjetividade, ministrada pelo professor Sérgio Prucoli
Grupo de trabalho: André Azoury, Bárbara Veronez e Carol Alves Lima
[referências]
DE
CERTEAU, M. A
invenção do cotidiano: 1 artes de fazer.
Petrópolis, RJ: Vozes,
1996.
GUIZZO,
I. Micropolíticas
Urbanas: uma aposta na cidade expressiva. 2008.
Tese de mestrado apresentada à Universidade Federal Fluminense.
JACQUES,
P. B. Corpografias
Urbanas.
IV ENECULT - Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura. 28 a 30 de maio
de 2008. Faculdade de Comunicação/UFBa, Salvador-Bahia-Brasil.
JACQUES,
P. B. Zonas
de Tensão.
Corpocidade:debates, ações e articulações, Salvador: EDUFBA,
2010
ROLNIK,
S. Cartografia
Sentimental, Transformações contemporâneas do desejo. 1989.
Editora Estação Liberdade, São Paulo.
SANTOS,
M. A
natureza do espaço, técnica e tempo, razão e emoção.
São Paulo:
Hucitec,
1996.
Postado por Bárbara Veronez
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