Michel Foucault (1926-1984) foi um dos filósofos e autores que se
destacou no estudo "entre sociedade e espaço edificado" (C.
Nascimento, 2008). Em seus estudos, o filósofo destaca por diversas vezes os
instantes da história em que há um rompimento entre instituições sociais de
origem medieval e como esse rompimento com a sociedade tem de ceder lugar a
novas práticas de organização - em campos como medicina, educação e
instituições de justiça. Com a mudança na organização dessas instituições,
conseqüentemente haveria também uma mudança na relação entre elas e os indivíduos.
Apesar de o foco de suas obras não ser de fato a própria arquitetura, " acredita-se,
entretanto, que é possível uma sistematização das interpretações do autor sobre
os edifícios e que, a partir dela, é possível construir um lastro conceitual
voltado à análise do processo de produção e do desempenho social de exemplares
de arquitetura que lidem com a noção de ordem e poder".
Segue um trecho de um artigo sobre essa relação estabelecida entre
o pensar em arquitetura e as obras de Foucault.
"Existe em Foucault uma construção lógica sobre edifícios e
válida para o próprio campo teórico da arquitetura, extrapolando os limites da
filosofia, história e epistemologia onde aparecem originalmente.
O
argumento é confirmado ao se confrontar o discurso de Foucault com formulações
de um grupo de estudiosos da morfologia da arquitetura que tem interesse
específico na descrição e análise dos edifícios com base nas relações entre
espaço e sociedade. Mesmo trilhando caminhos diferentes, este grupo chega a
conclusões similares às expressas por Foucault.
Historicamente, a teoria da arquitetura tem se caracterizado mais
como prescritiva do que como analítica. É muito comum que o discurso
arquitetônico se preocupe em definir como se pode imprimir determinada
ideologia através da forma edificada. Não é de admirar que se espere que essa
transmissão se dê no seu nível de percepção mais imediato: a dimensão física
tectônica e plástica da arquitetura.
Contudo,
é interessante observar que nas situações em que Foucault usa edifícios,
trata-os como exemplos de fatos sociais: nada se percebe quanto a aspectos
artísticos, como é comum no discurso tradicional sobre a arquitetura. Na
verdade, volta-se para as suas questões eminentemente espaciais.
Foucault
desenvolve um enfoque descritivo do espaço, o que o aproxima de uma certa
vertente da produção teórica sobre a arquitetura que tem por base a descrição
de edifícios a partir das intenções sociais subjacentes à forma – a relação
entre indivíduo e meio e entre indivíduo e indivíduos.
Hillier
e Hanson, por exemplo, afirmam que é na dimensão espacial da arquitetura que
reside a sua finalidade e que o espaço não é mero cenário das relações sociais,
mas desempenha um papel importante sobre elas (1). Segundo Hillier, existem
leis que subjazem a forma arquitetônica que são de três tipos: (a) leis
do objeto – referem-se aos princípios que
governam a forma em si e constituem um determinado padrão
espacial; (b) leis
da sociedade para a forma edificada – referentes às maneiras como
os indivíduos usam e adaptam as leis do objeto para espacializar diferentes
tipos de relações sociais: são princípios pelos quais categorias sociais podem
ser identificadas na forma edificada, caracterizando o que ele chama de vida
espacial; e (c) leis
da forma para a sociedade – de como o sistema espacial
edificado tem efeitos sobre os indivíduos: são princípios pelos quais a forma
tem conseqüências sociais para além daquelas originalmente programadas ou
conscientemente atribuída pela vida
social efetivamente operante (2).
Os
autores elaboram o conceito de um “edifício elementar” para explicar o
mecanismo de produção e funcionamento mais primário da arquitetura – de
mediadora de relações sociais. A sua estrutura é composta apenas da delimitação
de uma unidade espacial, acessível ao ambiente exterior por uma só abertura.
Neste modelo, a função essencial do espaço é promover a interface entre aqueles
que “habitam” (controlam) o edifício e aqueles que o “visitam”. Os primeiros se
situam na zona mais distante em relação ao exterior, e estariam mais segregados
na relação; os últimos são mantidos nos espaços mais próximos em relação ao
exterior, e estariam mais integrados ao sistema como um todo (3).
Considerando
o caráter do evento que se deseja promover, edifícios com mais alto nível de
complexidade programática podem subdividir, multiplicar ou mesmo inverter
aquele padrão de relação entre usuários do edifício elementar. Sendo assim, a
depender de como e onde ocorrem tais diferenciações, diferentes tipos edilícios
são elaborados. O raciocínio dos autores sugere um caminho para que se descreva
a arquitetura a partir do conjunto de relações geradas pela organização
espacial, não pelo seu aspecto físico-material.
Para
Hillier e Hanson, o Panóptico é um exemplar paradigmático da utilização do
espaço como interface para relações sociais. É o exemplo que melhor ilustra a
inversão da relação primordial do edifício elementar. A idéia de “edifícios
reversos” (4) é muito próxima da análise que Foucault faz da estrutura dos
hospitais franceses do século XVIII, quando os pacientes “visitantes” passam a
ocupar os compartimentos mais segregados e os médicos “habitantes” passam a
controlar os corredores que integram todo o sistema. É ainda mais clara no
próprio Panóptico, o “teatro invertido”, em comparação aos esquemas espaciais
de edifícios pré-modernos – cujo padrão de mediação de relações entre
indivíduos estaria mais próximos daquele do edifício elementar (5).
Outro
autor que muito se aproxima da análise da arquitetura de Foucault é Thomas
Markus, que estuda um conjunto de edifícios produzidos durante a Revolução
Industrial para abrigar programas emergentes àquela época e apresenta uma
classificação tipológica extensiva desses edifícios (6).
Planta e esquema vertical do Panóptico, de Jeremy Bentham, 1787
Markus
compreende o edifício como um dispositivo capaz de classificar usuários (classifying devices) (7) através do
ordenamento do espaço. Ele organiza uma taxonomia fundamentada no modo como
cada tipo de edifício opera as demandas da sociedade – como ordem, controle e
hierarquia são concretizados no espaço. O autor divide os exemplares que
analisa em edifícios que relacionam: (a) pessoas
a pessoas (para formação, reformação,
asseio ou recreação); (b) pessoas
a conhecimento (material e efêmero); e (c) pessoas
a coisas (em processos de produção ou de troca) (8).
As
descrições de funcionamento dos edifícios utilizados por Foucault coincidem com
as interpretações de Markus. A fábrica, que para Foucault era determinada pela
eficiência e monitoramento do processo produtivo, pertenceria ao terceiro grupo
– pessoas a coisas, edifícios de produção. O hospital do século XVIII e o
próprio Panóptico são considerados por Markus como pertencentes ao primeiro
grupo – pessoas a pessoas, edifícios de reformação. Mas é o princípio de
controle visual total do modelo de Bentham que Markus identifica como ponto de
partida para diversos exemplares pertencentes aos seus grupos taxonômicos
emergentes da modernidade, todos vinculados ao cenário descrito por Foucault
(escolas, prisões, workhouses, asilos, casas de caridade, bibliotecas, etc.).
Outra
idéia fundamental em Markus é da existência de uma relação direta entre
arquitetura e texto. O argumento é de que existe uma correspondência entre
estrutura espacial edilícia e o texto prescritivo que a precede, sendo
necessário abordar o próprio edifício como um discurso social. Como se percebe,
tal interpretação também se associa diretamente com a estruturação do discurso
de Foucault para explicar o surgimento das instituições disciplinares e dos
seus dispositivos de aplicação – o caráter do edifício é definido na
programação precisa dos seus espaços para viabilizar uma série de relações
entre os indivíduos.
Referências_
(1)HILLIER, B.; HANSON, J. The
social logic of space. Cambridge, Cambridge University Press, 1984.
(2)HILLIER,
B. The
Architecture of the Urban Object. Ekistics 56, 5-21. 1989.
(3)HILLIER, B.; HANSON, J. Op.
Cit.
(4)HILLIER, B.; HANSON, J. Op.
Cit.
(5)LOUREIRO, C. Classe, controle, encontro: o espaço
escolar. 2000. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) –
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2000.
(6)MARKUS, T. A. Buildings
and power: freedom & control in the origin of modern building types. Londres,
Routledge, 1993.
(7)MARKUS, T. Buildings
as classifying devices. Environment and Planning B: Planning and Design.
14: 467-484. 1987.
(8)MARKUS, T. 1993. Op.
Cit.
NASCIMENTO, C. - Edifício como espaço analítico,
2008.
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