segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Foucault e Arquitetura

postado por Taís R. de Souza Tostes


Michel Foucault (1926-1984) foi um dos filósofos e autores que se destacou no estudo "entre sociedade e espaço edificado" (C. Nascimento, 2008). Em seus estudos, o filósofo destaca por diversas vezes os instantes da história em que há um rompimento entre instituições sociais de origem medieval e como esse rompimento com a sociedade tem de ceder lugar a novas práticas de organização - em campos como medicina, educação e instituições de justiça. Com a mudança na organização dessas instituições, conseqüentemente haveria também uma mudança na relação entre elas e os indivíduos. Apesar de o foco de suas obras não ser de fato a própria arquitetura, " acredita-se, entretanto, que é possível uma sistematização das interpretações do autor sobre os edifícios e que, a partir dela, é possível construir um lastro conceitual voltado à análise do processo de produção e do desempenho social de exemplares de arquitetura que lidem com a noção de ordem e poder".
Segue um trecho de um artigo sobre essa relação estabelecida entre o pensar em arquitetura e as obras de Foucault.

"Existe em Foucault uma construção lógica sobre edifícios e válida para o próprio campo teórico da arquitetura, extrapolando os limites da filosofia, história e epistemologia onde aparecem originalmente.
O argumento é confirmado ao se confrontar o discurso de Foucault com formulações de um grupo de estudiosos da morfologia da arquitetura que tem interesse específico na descrição e análise dos edifícios com base nas relações entre espaço e sociedade. Mesmo trilhando caminhos diferentes, este grupo chega a conclusões similares às expressas por Foucault.
Historicamente, a teoria da arquitetura tem se caracterizado mais como prescritiva do que como analítica. É muito comum que o discurso arquitetônico se preocupe em definir como se pode imprimir determinada ideologia através da forma edificada. Não é de admirar que se espere que essa transmissão se dê no seu nível de percepção mais imediato: a dimensão física tectônica e plástica da arquitetura.
Contudo, é interessante observar que nas situações em que Foucault usa edifícios, trata-os como exemplos de fatos sociais: nada se percebe quanto a aspectos artísticos, como é comum no discurso tradicional sobre a arquitetura. Na verdade, volta-se para as suas questões eminentemente espaciais.
Foucault desenvolve um enfoque descritivo do espaço, o que o aproxima de uma certa vertente da produção teórica sobre a arquitetura que tem por base a descrição de edifícios a partir das intenções sociais subjacentes à forma – a relação entre indivíduo e meio e entre indivíduo e indivíduos.
Hillier e Hanson, por exemplo, afirmam que é na dimensão espacial da arquitetura que reside a sua finalidade e que o espaço não é mero cenário das relações sociais, mas desempenha um papel importante sobre elas (1). Segundo Hillier, existem leis que subjazem a forma arquitetônica que são de três tipos: (a) leis do objeto – referem-se aos princípios que governam a forma em si e constituem um determinado padrão espacial; (b) leis da sociedade para a forma edificada – referentes às maneiras como os indivíduos usam e adaptam as leis do objeto para espacializar diferentes tipos de relações sociais: são princípios pelos quais categorias sociais podem ser identificadas na forma edificada, caracterizando o que ele chama de vida espacial; e (c) leis da forma para a sociedade – de como o sistema espacial edificado tem efeitos sobre os indivíduos: são princípios pelos quais a forma tem conseqüências sociais para além daquelas originalmente programadas ou conscientemente atribuída pela vida social efetivamente operante (2).
Os autores elaboram o conceito de um “edifício elementar” para explicar o mecanismo de produção e funcionamento mais primário da arquitetura – de mediadora de relações sociais. A sua estrutura é composta apenas da delimitação de uma unidade espacial, acessível ao ambiente exterior por uma só abertura. Neste modelo, a função essencial do espaço é promover a interface entre aqueles que “habitam” (controlam) o edifício e aqueles que o “visitam”. Os primeiros se situam na zona mais distante em relação ao exterior, e estariam mais segregados na relação; os últimos são mantidos nos espaços mais próximos em relação ao exterior, e estariam mais integrados ao sistema como um todo (3).
Considerando o caráter do evento que se deseja promover, edifícios com mais alto nível de complexidade programática podem subdividir, multiplicar ou mesmo inverter aquele padrão de relação entre usuários do edifício elementar. Sendo assim, a depender de como e onde ocorrem tais diferenciações, diferentes tipos edilícios são elaborados. O raciocínio dos autores sugere um caminho para que se descreva a arquitetura a partir do conjunto de relações geradas pela organização espacial, não pelo seu aspecto físico-material.
Para Hillier e Hanson, o Panóptico é um exemplar paradigmático da utilização do espaço como interface para relações sociais. É o exemplo que melhor ilustra a inversão da relação primordial do edifício elementar. A idéia de “edifícios reversos” (4) é muito próxima da análise que Foucault faz da estrutura dos hospitais franceses do século XVIII, quando os pacientes “visitantes” passam a ocupar os compartimentos mais segregados e os médicos “habitantes” passam a controlar os corredores que integram todo o sistema. É ainda mais clara no próprio Panóptico, o “teatro invertido”, em comparação aos esquemas espaciais de edifícios pré-modernos – cujo padrão de mediação de relações entre indivíduos estaria mais próximos daquele do edifício elementar (5).
Outro autor que muito se aproxima da análise da arquitetura de Foucault é Thomas Markus, que estuda um conjunto de edifícios produzidos durante a Revolução Industrial para abrigar programas emergentes àquela época e apresenta uma classificação tipológica extensiva desses edifícios (6).

Planta e esquema vertical do Panóptico, de Jeremy Bentham, 1787 

Markus compreende o edifício como um dispositivo capaz de classificar usuários (classifying devices) (7) através do ordenamento do espaço. Ele organiza uma taxonomia fundamentada no modo como cada tipo de edifício opera as demandas da sociedade – como ordem, controle e hierarquia são concretizados no espaço. O autor divide os exemplares que analisa em edifícios que relacionam: (a) pessoas a pessoas (para formação, reformação, asseio ou recreação); (b) pessoas a conhecimento (material e efêmero); e (c) pessoas a coisas (em processos de produção ou de troca) (8).
As descrições de funcionamento dos edifícios utilizados por Foucault coincidem com as interpretações de Markus. A fábrica, que para Foucault era determinada pela eficiência e monitoramento do processo produtivo, pertenceria ao terceiro grupo – pessoas a coisas, edifícios de produção.  O hospital do século XVIII e o próprio Panóptico são considerados por Markus como pertencentes ao primeiro grupo – pessoas a pessoas, edifícios de reformação. Mas é o princípio de controle visual total do modelo de Bentham que Markus identifica como ponto de partida para diversos exemplares pertencentes aos seus grupos taxonômicos emergentes da modernidade, todos vinculados ao cenário descrito por Foucault (escolas, prisões, workhouses, asilos, casas de caridade, bibliotecas, etc.).
Outra idéia fundamental em Markus é da existência de uma relação direta entre arquitetura e texto. O argumento é de que existe uma correspondência entre estrutura espacial edilícia e o texto prescritivo que a precede, sendo necessário abordar o próprio edifício como um discurso social. Como se percebe, tal interpretação também se associa diretamente com a estruturação do discurso de Foucault para explicar o surgimento das instituições disciplinares e dos seus dispositivos de aplicação – o caráter do edifício é definido na programação precisa dos seus espaços para viabilizar uma série de relações entre os indivíduos.



Referências_
(1)HILLIER, B.; HANSON, J. The social logic of space. Cambridge, Cambridge University Press, 1984.
(2)HILLIER, B. The Architecture of the Urban Object. Ekistics 56, 5-21. 1989.
(3)HILLIER, B.; HANSON, J. Op. Cit.
(4)HILLIER, B.; HANSON, J. Op. Cit.
(5)LOUREIRO, C. Classe, controle, encontro: o espaço escolar. 2000. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São      Paulo, São Paulo, 2000.
(6)MARKUS, T. A. Buildings and power: freedom & control in the origin of modern building types. Londres, Routledge, 1993.
(7)MARKUS, T. Buildings as classifying devices. Environment and Planning B: Planning and Design. 14: 467-484. 1987.
(8)MARKUS, T. 1993. Op. Cit.
NASCIMENTO, C. - Edifício como espaço analítico, 2008.




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