quarta-feira, 30 de novembro de 2011

TIPO / MODELO




"Novos tipos, portanto, também podem ser formados a partir da individualidade do próprio objeto arquitetônico. No entanto, ao se manifestarem a partir de obras paradigmáticas que, muitas vezes, representam reações agressivas de luta contra as ordens impostas, os contratipos são, em sua maioria, propostas socialmente ilegítimas de permanência bastante efêmera."

Postado por Flávia Arruda

REFERÊNCIA
MAHFUZ, E. C. Nada provém do nada - A produção da arquitetura vista como transformação de conhecimento. Disponível em: http://www.fau.ufrj.br/prolugar/arq_pdf/dissertacoes/Dissert_Arthur%20tavares_2005/CAP1_a%20evolu%E7%E3o%20do%20conceito%20de%20tipo.pdf

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Sócrates versus o arquiteto-contrutor

postado por Clara

“Tirai o andaime, o saibro, a caliça, a pedra, a massa e a argamassa, fica a forma e a arquitetura da forma.” Plotino


O livro “Eupalinos, o arquiteto” foi escrito em 1921 por Paul Valéry que encena, à maneira de Platão, um diálogo entre Sócrates e Fedro, dizendo ser o construir o mais completo de todos os atos, pois exige amor, meditação, obediência ao mais belo pensamento, “invenções de leis pela própria alma”.
Neste diálogo entre Fedro e Sócrates no limbo da eternidade, o primeiro tem saudades da vida (e dos seus aspectos de mundo sensível) e o segundo está satisfeito com sua morte (ama o mundo desencarnado).
Eupalinos, o arquiteto, era senhor de seu preceito. Nada negligenciava. Prescrevia o corte das tábuas no veio da madeira, a fim de que, interpostas entre a alvenaria e as vigas que nelas se apoiassem, impedissem a umidade de penetrar nas fibras, embebendo-as e apodrecendo-as. Prestava a mesma atenção a todos os pontos sensíveis do edifício. Dir-se-ia tratar-se de seu próprio corpo. Durante o trabalho da construção, raramente afastava-se do canteiro. Conhecia todas as suas pedras: cuidava da precisão de seu talhe, estudava minuciosamente todos os meios de evitar que as arestas se ferissem ou que a pureza dos encaixes se alterasse. Ordenava a prática da cinzeladura, a reserva dos calços, a execução de biséis no mármore dos adornos, dispensava o mais fino cuidado ao reboco que aplicava nos muros de simples pedra
De qualquer modo, em Eupalinos ou o arquiteto consta a afirmação de que construir exige obediência ao mais belo pensamento. Eupalinos ensina a Fedro o que isso significa: o ato de construir está impregnado de experiências pessoais, de sentimentos e, principalmente, de emoções:
“Escuta, Fedro, e olha esse pequeno templo que construí para a morada de Hermes a alguns passos daqui; se soubesses o que significou para mim! Onde o passante só enxerga uma graciosa capela, quatro colunas muito simples, imprimi nela a lembrança de um claro dia de minha vida. Esse templo, ninguém o sabe, é a imagem matemática de uma jovem de Corinto que, por felicidade, amei”.
Fedro relata ao mestre as idéias do construtor grego Eupalinos em várias passagens revela que, para Eupalinos, a invenção da forma não poderia preceder a invenção de sua própria construção. Sócrates e Platão propuseram que deviso sua inconstância e fugacidade da realidade sensível “a única realidade estável e verdadeira [é] a que encontramos no mundo das idéias. O Belo, as imagens, a realidade física e corpórea e mesmo as artes, servem como índices e meios através dos quais ascender ao mundo transcendente e ao Bem Supremo a serem contemplados. E nesta contemplação da Verdade e do Bem supremos se realiza o conhecimento verdadeiro, de ordem espiritual, que nos liberta do mundo de sombras da caverna, ao qual estamos aprisionados por nosso corpo.” (BRANDÃO).
Fedro contrapõe a esta doutrina socrática as concepções de Eupalinos de Megara, “construtor do templo” e do qual se tornara amigo. “Essa “construtividade”, essa atividade operativa, encetada no encontro do mundo das formas com o mundo da matéria e que trafega simultaneamente entre as idéias concebidas e a produção do real e do concreto, desafia a herança platônica, coloca seus limites e evidencia as possíveis fraudes filosóficas que o próprio Sócrates julga ter cometido. Eupalinos está para Sócrates tal como este estava para os sofistas, e a labilidade e falsidade acusada no conhecimento destes, agora parecem habitar o próprio conhecimento socrático. Todo o livro desenvolve este argumento num misto de melancolia e beleza, e abre várias sendas para realizarmos o questionamento do que seja a filosofia e do seu sentido, tais como a relação entre as palavras e a ação, o Belo e o Bem, o sensível e a razão. Interessam-nos aqui apenas alguns focos sobre os quais centrar a relação entre a atividade do arquiteto e construtor com a filosofia e os problemas a esta colocados. Não é contra a filosofia, tout court, que o arquiteto se dirige, mas contra um modo de filosofar. Há uma filosofia em Eupalinos, menos sistemática e totalizante, sem dúvida, mas mais humana e que não perde de vista a contingência e as possibilidades de nossas ações dentro da finitude em que elas se desenvolvem, à semelhança da filosofia renascentista em sua recusa da escolástica.” Cf. Carlos Antônio Leite Brandão. A filosofia do arquiteto 1
Porém, Sócrates acaba seduzido pela beleza e ordem engendradas na matéria, atribuídas por Fedro às obras de arquitetura que “cantam” do arquiteto Eupaninos. Sócrates, então, torna-se o arquiteto que não fora em vida, para decepção de Fedro. Mas na eternidade não havia lugar, topos, só o silêncio ou a reminiscência, que no platonismo, é
“lembrança de uma verdade que, contemplada pela alma no período de desencarnação (o entremeio que separa suas existências materiais), ao tornar à consciência se evidencia como o fundamento de todo o conhecimento humano” (HOUAISS).

“A admiração de Sócrates pela filosofia e pela relação com o tempo que emergem com a arquitetura se faz misturada à revisão de sua própria herança:  “Ah! Ai de mim! Um sábio que não deixa trás de si mais que o personagem de um falante, e diversas palavras imortalmente abandonadas... Que fiz senão dar a crer aos humanos que eu sabia muito mais que eles a respeito das coisas duvidosas?... A vida não se pode defender contra essas imortais agonias... Eu teria construído, cantado... Ó perda pensativa de meus dias! Que artista deixei morrer. Enquanto a facilidade de minhas famosas palavras me persegue e me aflige, eis que suscito para Eumênides minhas ações que não se realizaram, minhas obras não nascidas”]” Valery apud BRANDÃO.
 
"De Sócrates não ficaram obras, mas apenas palavras inventadas. O anti-Sócrates aqui se apresenta: é o construtor, detentor de uma outra espécie de filosofia. O mundo a ser encontrado – a divindade e a suprema idéia de Bem – não o é por pensamentos e palavras, mas por atos e combinação de atos, como os que presidem o trabalho do arquiteto. Só com atos nos colocamos no grande desígnio, nos inserimos no mundo e nos conhecemos e fazemos. E, de todos os atos," (BRANDÃO)

“o mais completo é o de construir. Uma obra exige amor, meditação, obediência ao teu mais belo pensamento, invenção de leis pela tua alma, e muitas outras coisas que ela extrai maravilhosamente de ti e que não suspeitavas possuir. Emana do mais íntimo de tua vida, sem contigo se confundir. Se dotada de pensamento, pressentiria tua existência, a qual jamais conseguiria provar ou conceber claramente”  Valery apud BRANDÃO.

“À serviço da vida humana, o construtor separa, escolhe e reorganiza as matérias num composto preciso para o corpo, prazeroso para a alma e resistente ao tempo, composto este que a filosofia de Sócrates é vista incapaz de atingir, uma vez que ela não articula o sensível, o inteligível e o ambiente dúplice em que transita nossa temporalidade.” Cf. Carlos Antônio Leite Brandão. A filosofia do arquiteto 1  
“Compreendem-se assim os valores maiores da arquitetura grega, como a geometria em que o espírito se aplica para conformar a matéria desorganizada do mundo e impor-lhe uma ordem perene que responda de forma equilibrada ao que nos constitui: o corpo, a alma e o tempo. Esta resposta arquitetônica é bem diversa da que hoje se manifesta em nossas construções e seria o caso de verificar a que visão de mundo estas nos conduzem. O livro de Paul Valéry mostra-nos bem como a arquitetura não é mera ilustração de uma filosofia, mas pode mesmo contradizê-la e servir de fonte para um outro modo de filosofar. Um mesmo templo grego, com suas formas geométricas a refinarem-se no tempo, conduz-nos tanto ao eterno retorno de Platão e de Sócrates quanto a uma filosofia da obra e do sensível que não se esgota na contemplação do mundo das idéias. A arquitetura, quando realmente está presente nas obras que fazemos, nos remete além dela própria: não à história da filosofia ou das idéias, mas às nossas dúvidas e certezas, ao nosso próprio ato de filosofar, ao horizonte onde a filosofia, a poesia e arte se encontram entre si e com nós mesmos: ou seja, ao nosso modo próprio de habitar o mundo, a cidade, a casa e a história.” Cf. Carlos Antônio Leite Brandão. A filosofia do arquiteto 1.


Referências
VALÉRY, Paul. Eupalinos ou O Arquiteto. Tradução Olga Reggiani. São Paulo: Editora 34, 1996, p. 175.
BRANDÃO. Antônio Leite Brandão. A filosofia do arquiteto 1. http://www.arq.ufmg.br/ahr/artigos/afilosofiaCACA.html

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Lina e a sociedade do Pelô


Breve ensaio comentado sobre a região do Pelourinho abordando pontualmente a Ladeira da Misericórdia.
Postado por Matheus Mariani Coelho

A Ladeira da Misericórdia, situada em Salvador - Bahia, caracteriza um padrão típico de ocupação das cidades coloniais Portuguesas tal qual sua tipografia das fachadas.
A cidade de Salvador foi levantada sobre uma falha geológica chamada Falha de Salvador, e por conta disso estabelece uma divisão territorial, semelhante com a que vemos em Vitória, em Cidade Alta e Cidade Baixa. Esse modelo de ocupação, induzido pelo relevo, molda essa configuração de “cidade de ladeiras”. Dentre as diversas ladeiras de Salvador a da Misericórdia tem particular importância, pois se encontra na transição da Cidade Baixa para a Cidade Alta – cidade portuária e cidade residencial respectivamente – e desde os primórdios tomou-se como ponto de encontro e boemia.
Talvez a maior importância, portanto, da Ladeira da Misericordia tenha sido a de tutelar a sociabilidade nessa que era uma das mais antigas vias da cidade, e por alguns chamada praça.
O plano de recuperação proposto por Lina e sua equipe contemplava toda a região do Pelourinho, porem a Ladeira da Misericórdia figura como Projeto Piloto devido à intenção da arquiteta de usar o resultado da restauração como amostra do que se pretendia com o resto do projeto. Foi, contudo, uma tentativa de compreensão do território a partir da analise de aspectos relevantes na estrutura histórico-social que pretendia reerguer o sítio do Pelourinho. Arrisco dizer que essa não tenha sido apenas uma análise mas sim uma esquizoanálise arquitetônica onde Lina desmembra os indícios “clínico” rompendo com os pressupostos de categorização dos espaços e das pessoas.
Um conceito metodológico ainda é observado, porém não tão rígido e engessado. Como propõe Delleuze e Guattari, a esquizoanálise se torna eficaz justamente na quebra do paradigma linguístico onde o interventor não apenas associa os termos visuais e culturais à tecnologia mas também externaliza subjetividades.
Tomou-se a recuperação de aspectos particulares de cada edifício o ponto de partida para salvaguardar as singularidades de cada etapa de intervenção. Não privara, o todo, de uma coerência contextual, conseguindo, por conceito, recontar a história do conjunto enquanto sua materialidade histórica tornando possível reconhecer uma matriz quase literária, tanto ideológica quanto social. O que a Lina nos diz com o projeto é que mesmo baseando-se em intervenções isoladas – edifício a edifício -, as interações sociais são mantidas no nível de espontaneidade assim como ocorreu na concepção original do espaço, ou seja, edifício por edifício.
O resultado almejado só é conseguido com algumas práticas elucubradas de imersão, marca registrada de Lina, e que justifica plenamente suas intenções e materializações. Ela se afunda no labirinto das ladeiras, não obstinada a achar a saída, parece querer se perder entre os becos e ali ficar.
A ponte conceitual: Lina-Lelé-Nervi
Transpondo a ótica conceitual – a esse tempo vencida com facilidade por Lina -, passa a valer o caráter material da intervenção. A materialização do conceito. Para tal tarefa Lina evoca para ajuda-la João Filgueiras Lima (Lelé), o qual, era sabido, desenvolvera aclamados conceitos e métodos de produção de estruturas pré-fabricadas. Com citações as técnicas de Nervi – técnicas-chave na utilização de argamassa armada -  o convite é deferido e aceito de imediato por Lelé
Lina propõe a comunhão entre projeto arquitetônico e projeto estrutural e via com bons olhos a possibilidade da construção modular sistematizada e de padrões repetitivos. Pretendia, com o emprego das técnicas modulares, baixar o custo das obras e domar a estima da especulação imobiliária, manter os moradores no local e permitir a sustentação e o desenvolvimento de novas práticas subsidiárias dos mesmos.
Quanto às práticas projetuais que mesclavam arquitetura e estrutura Lina disse:“… A estrutura de um edifício é elevada ao nível da poesia, como parte da estética. Não há nenhuma diferença. Um arquiteto deve projetar a estrutura como projeta arquitetura, no sentido doméstico da palavra.”Quanto a tipificação das intervenções, afirmava ela, desse modo, fazer a manutenção de uma identidade contextual: “o padrão é a lei basilar da natureza. Não aceitar o ‘standard’ significa assumir uma posição de soberba, um individualismo fictício que não tem nada a ver com a ‘personalidade’, a marca sagrada existente em cada indivíduo e que não depende do ‘standard”.
Outra importante fala de Lina diz respeito ao peso que dava às questões sociais considerando sua arquitetura de posse daquele que a ocupa, numa quase utopia social chega a eximir a arquitetura de seu valor artístico: “… Vejo a arquitetura como serviço coletivo e como poesia. Alguma coisa que nada tem a ver com arte.”.
A criticidade do restauro
Lina entendia o restauro como um aprimoramento do valor histórico. Abstém-se da nostalgia, saudosismo e romantismo na hora de avaliar as ruínas e consegue defrontar o sítio parcialmente destruído sem idealizar uma recomposição ripristina. “A palavra restauração lembra, em geral, as tristes restaurações. (…) Em geral, a restauração é a restituição a um estado primitivo de tempo, de lugar, de estilo. Depois da Carta de Veneza, de 1965, as coisas melhoraram, mas aquele marco de ranço de uma obra restaurada sempre continua. É muito difícil não perceber ou sentir isso entrando num restauro. O que estamos procurando (…) é justamente um marco moderno (…). Esse sistema de pré-moldados, perfeitamente distinto da parte histórica, é denunciado pela sua estrutura e pelo tempo atual”. (Lina, Revista Projeto 1987)
Confrontando as antigas práticas de restauro e a visão proposta pela Carta de Veneza, Lina ataca claramente a posição defendida por Viollet-le-Duc para quem“restaurar um edifício é restabelecê-lo em um estado completo que pode não ter existido nunca em um dado momento”.
Lina mostra, conscientemente, sua concordância com as idéias de Camillo Boito e Gustavo Giovannoni quanto ao restauro histórico-filosófico que se desdobra no “restauro científico”, que mescla a análise arqueológica, documentária e de todos os indícios que transmitam o mais próximo possível do ambiente original.
“A menção à Carta de Veneza é indicação de que está ciente da ampliação da noção de patrimônio, que ultrapassa o limite do monumento, para incluir a produção arquitetônica ordinária, comum, conforme o costume. Uma ampliação que passa a considerar dignas de interesse de preservação as edificações mais recentes, o conjunto urbano, seu traçado, suas relações entre volume construído e espaços abertos, além do próprio ambiente natural. Essa maior extensão do acervo dos bens patrimoniais contribui para a crise metodológica que atinge o restauro científico, abrindo caminho para a revisão conduzida pelo restauro crítico, o qual pressupõe um contexto de intervenção e não apenas intervenções pontuais.”(Artigo Território de Contato, Revista AU, outubro 2007).
Lina propõe a estruturação de um Centro Histórico verdadeiro, ligado as suas origens e não apenas a um resgate físico que transformaria o Pelourinho em uma mercadoria, uma alegoria, um cenário “pra inglês ver”. Foge do espetáculo e da simulação.
Infelizmente, à frente referiremo-nos a passagem que dita o rompimento com o resguardo conceitual proposto. Vem-se, então, o abando do projeto e a mediocridade da política social brasileira.
Do Projeto
Subseqüente a essa vasta introdução ao conceito de Lina, referencias as intervenções devem ser feitas, tal como o plano geral do projeto.
Com o planejamento feito e apartada pelas técnicas dos pré-fabricados de Lelé, as intervenções iniciam-se em 1986 e tecem uma rápida e econômica recuperação do sítio. Há quem submeta à criticas negativas o emprego de pré-fabricados na restauração de um sitio histórico, mas nesse caso a intenção de baratear a obra servia de argumento para  manutenção da população que residia ali ao final das obras.
Marcelo Ferraz, parceiro de Lina no projeto de restauro, didaticamente, explicou a metodologia tomada pelo grupo de arquitetos: “… o objetivo maior era manter aquela população que lá vivia – ou grande parte dela – em condições dignas de habitabilidade sem criar um êxodo natural, com o aumento do valor imobiliário, e nem forçado, como saneamento social deliberado. Nosso projeto, baseado em um levantamento sócio-econômico de todas as famílias, previa uma logística de efeito dominó. Ou seja, recuperávamos uma ruína abandonada transformando-a em moradia plurifamiliar – alguns apartamentos em cada casarão antigo recuperado –, transferindo para ali os moradores vizinhos das casas degradadas.
Em seguida partíamos para a recuperação dessas casas degradadas já desocupadas, para trazer outras famílias, e assim por adiante. Em todos os casos, o térreo dessas casas deveria conter um pequeno comércio ou serviço, a ser tocado pelos próprios moradores. Chegou-se ali a levantar, através de pesquisas, demandas de usos e capacidade de instalação de equipamentos comerciais e públicos para atender a estes usos. O cadastro de cada imóvel ou ruína era primoroso e, junto ao programa pré-estabelecido do futuro uso e definição das famílias que iriam ocupar cada imóvel, é que partíamos para o projeto arquitetônico.”.
Nessa passagem ele cita a intenção de promover atividades comerciais na vida dos moradores, reforçando a idéia da auto-gestão do espaço e a tentativa de não proporcionar a apropriação indevida do turismo de cenário. A frente diz também que só será alcançado um bom ambiente turístico se primeiramente o espaço for coerente com suas raízes e suas realidades “…não é criando “Disneylândias” do passado colonial que sairemos do estágio primário em que nos encontramos quando se trata de conservação de nossas cidades.”.
A escolha da Ladeira da Misericórdia como projeto piloto foi estratégica. No sítio podia-se encontrar terrenos baldios, muralhas de contenção, ruínas dos séculos XVII, XIX e XX e boa densidade de vegetação. Sem contar a exuberante vista para o mar e o aspecto da grandiosidade simbólica da ladeira em questão.
Do programa
A proposição das edificações seguiu das residências aos comércios – neste último, a ênfase seria nos estabelecimentos culinarísticos -. Compunham o conjunto: um restaurante, um bar, três casarões a serem transformados em 8 ou 9 apartamentos com 3 pontos comerciais em seus térreos.
A reestruturação das ruínas foi solucionada com os já citados elementos pré-fabricados de Lelé; contrafortes de concreto de linguagem contemporânea que se inseriam como elementos da fachada.

Desde o começo Lina descartou a idéia de “revitalização”, dizia ela que vida ali não faltava: “… prostituição, bebida, drogas e crime, quer coisa mais viva?”. A idéia então seria de trazer dignidade aos moradores. Adotando princípios da Carta de Veneza propõem-se a transformar o estado de abandono, recuperando-o e expondo, de forma a trazer integridade social, o passo histórico de satisfações da comunidade.

Em alguns momentos, justamente quando se propõe gerir “dignidade” à população local, observo certa dose de prepotência arquitetônica e sua cisma antropológica. Eu implicaria mais com isso não fosse a sua proposição imersiva. De fato foi apenas um deslize conceitual. Dignidade pressupõe uma série de valores rígidos e mecanizados, lógicos e idealizados, bem longe da proposta esquizo.

Continuemos…

Com as mudanças no setor administrativo no governo bahiano, um recorrente problema político-administrativo veio a cerrar o andamento do projeto. Em certa ocasião Caetano Veloso disse: “Aqui tudo parece que é ainda construção, mas já é ruína”, se referindo ao constante abandono e retomada de posições de intervenção. O projeto, outrora coerente e conciso, deu passagem à “boa vontade” do poder publico que mais tarde viria a esfaquear e sangrar até a morte os conceitos originais de Lina e seu grupo. Ao final  tudo tinha sido esquecido e não parecia sequer ter existido.
Em um artigo publicado no site www.vitruvius.com.br, Marcelo Ferraz comenta a louvável tentativa do governo bahiano, no inicio dos anos 90, de retomar os trabalhos de restauração, porem submete a uma analise mais critica e traça alguns erros, a seu ver, no desdobrar da intervenção.
Pontos de surpresa
Inicialmente, desde o levantamento, foi proposto o uso dos fundos de quadra como quintais coletivos. Os terrenos tinha privilegiada configuração de modo que permitiam trabalhar consideráveis áreas livres ao fundo das edificações. Uma vez que cada casa seria ocupada por três ou quatro famílias, os quintais se mostravam como áreas comuns e grandes zonas verdes incrustadas no centro urbano. Um refúgio para quem visitara o complexo histórico. Permeando por arcos da fachada, passando por uma antessala (o térreo de comercio), adentrando a um jardim improvável e se surpreendendo com a exuberância dessa desanexa lógica urbana.
Disse Marcelo Ferraz: “Um exemplar foi executado e com grande sucesso: a Casa e Restaurante do Benin. Do Largo do Pelourinho, de urbanismo “seco”, ninguém poderia imaginar que, cruzando poucos metros, atravessando uma portada, poderia encontrar coqueiros altos, trepadeiras e até uma cascata de água. E assim deveriam ser todos os miolos de quadra, de jardins “secretos”.”.

Essa lógica de surpresas, presente nas cidades coloniais portuguesas, foi banalizada, dissimulada com a implantação de praças nas configurações cenográficas mais pra shoppings do que pra uma cidade de personalidade. Mais que esse erro de maquiar o espaço, onde havia um vazio original da ruína criou-se uma nova entrada, como uma porta contemporânea para um objeto antigo. Em voga está o museu urbano e sua moldura contemporânea. Uma confusão criada que desvirtua a riqueza do espaço e seu traçado, motivo de seu tombamento. Essa dissimulação confunde e desorienta o turista que não mais reconhece o que é original do traçado urbano e a estética original do colono português.
Nesta seqüência de equívocos, reforçando o “falso antigo”, encontramos as fachadas frontais reproduzidas nos fundos dos casarões induzindo o visitante a pensar que a fachada do fundo pode ter sido a frente de uma casa que se abria para aquela praça ou quintal.
A Ladeira-de-Todas-as-Cores

Em mais outra tomada cenográfica, uma vasta paleta de cores ocre foi aplicada as fachadas tentando reproduzir e individualizar as edificações, coisa que nunca tinha ocorrido. A branca pintura ocre original chamada “leite de cal”, foi substituída por tecnológicas tintas acrílicas ou a base de látex que espalharam uma contagiante onda de renovação o tal “Efeito Pelourinho” com grande sucesso de marketing de recuperação. A utilização de técnicas e matérias caros elevou o preço dos imóveis e tornou difícil a possibilidade da retomada dessas propriedades pelos originais moradores, que diga-se de passagem, foram removidos do local desde a retomada do processo de restauração.
Do plano de uso
Contrario ao que havia sido planejado, os moradores foram convidados a deixar suas moradias e posteriormente foram locados em faixas periféricas da metrópole para que as casas fossem restauradas. Várias casas foram recuperadas sem plano de uso definido correndo o risco de se transformarem em equipamentos culturais como a maioria das obras ociosas e onerosas provenientes do restauro. Por exemplo, residências viraram escolas sem equipamentos de escola. Fez-se uma espécie de “limpeza” social para o turista. Esvaziaram o centro histórico de seus reais protagonistas e sugaram o valor e a alma do Pelourinho.
Não foi proposto sistemas de atividades para suprir as reais necessidades do espaço do Pelourinho, tornando a região o menos auto-suficiente possível. O grau de rentabilidade turística era tanta que brotaram ali cubículos de artesanato fabricado em São Paulo, bares e botecos semelhantes a de qualquer rodoviária do país. Nos mostra o alto grau de despreocupação no estudo e na analise das questões sócio-urbanas ante a intervenção. O “Pelô” foi surrado pelo turismo global e foi varrida de sua alma 400 anos de história.
Ferraz suplica a consciência dos órgãos políticos brasileiros na hora do trato com o patrimônio histórico, cobra responsabilidade com a sociedade que geriu por tempos as ruínas outrora abandonadas pelo poder público.
De fato essas são questões referentes ao complexo de bastardia brasileiro e o ideal de exportação tanto dos patrimônios materiais quanto imateriais. Vemos o Pelourinho vendendo a imagem do folclore brasileiro como quem vende celular japonês. É possível, inclusive, se deparar com uma inversão de papeis, flagrar o criolo na banca de eletrônicos e o japonês vendendo berimbau.
Se é certo refazer sem restaurar e designar uma cultura específica que estagnou a anos, temos cumprido o objetivo. Confundiram e comprimiram todo valor imaterial em função das matérias visuais, apenas visuais. Confeccionaram uma maquete do labirinto e como um corpo de prova, num laboratório, numa caixa de vidro vedada de qualquer influência, como a pena de Boyle, cientificamente estabeleceram critérios “gringamente” palpáveis. Não foi um ato de intervenção, foi um ato de interferência.
De fato a Lina não é maior que o Pelô mas foi ela quem tentou se igualar à seu valor ou pelo menos entende-lo. O Pelô não é Bahia. Não pode ser subordinado a uma divisão política do território. O Pelô é o Pelô, esquizofrênico e único; e a ladeira clama por Misericórdia.

Referências:

DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix - O Anti-Édipo - 1972
Artigo Revista AU - Território de contato: ladeira da misericórida, salvador, Bahia; Eneida de Almeia, Luis Octávio da Silva, Marta Bogéa e Yopanan C.P. Rebello

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Escolha de Sócrates.


Postado por Emílio Terra.
Complemento.



Sua morte nos é contada por Platão, que foi um de seus discípulos. Veja um breve resumo:

"(...) Ele se levantou e se dirigiu ao banheiro com Críton, que nos pediu que esperássemos, e esperamos, conversando e pensando (...) na grandeza de nossa dor. Ele era como um pai do qual estávamos sendo privados, e estamos prestes a passar o resto da vida orfãos. (...) A hora do pôr do sol estava próxima, pois ele tinha passado um longo tempo no banheiro .(...) Pouco depois, o carcereiro entrou e se postou perto dele, dizendo:

- A ti, Sócrates, que reconheço ser o mais nobre, o mais delicado e o melhor de todos os que já vieram para cá, não irei atribuir sentimentos de raiva de outros homens (...) de fato, estou certo de que não ficarás zangado comigo, porque como sabes, são os outros , e não eu o culpado disso. E assim, eu te saúdo, e peço que suportes sem amargura aquilo que precisa ser feito, sabes qual é a minha missão - e caindo em prantos, voltou-se e retirou-se.

Sócrates olhou para ele e disse:

- Retribuo tua saudação, e farei como pedes. - E então, voltando-se para nós disse: - Como é fascinante esse homem; desde que fui preso, ele tem vindo sempre me ver,e agora vede a generosidade com que lamenta a minha sorte. Mas devemos fazer o que ele diz; Críton, que tragam a taça, se o veneno estiver preparado.(...) 

Críton, ao ouvir isso fez um sinal para o criado, o criado foi até lá dentro, onde se demorou algum tempo; depois voltou com o carceireiro trazendo a taça de veneno. Sócrates disse:

- Tu, meu bom amigo, que tem expêriencias nesses assuntos, irá me dizer como devo fazer.

O homem repondeu: 

- Basta caminhar de um lado para outro, até que tuas pernas fiquem pesadas, depois deita-te e o veneno agirá. - Ao mesmo tempo estendeu a taça a Sócrates, (..) que segurou-a (...) 

E então levando a taça aos lábios, bebeu rápida e decididamente o veneno. 

Até aquele instante a maioria de nós conseguira segurar a dor; mas agora, vendo-o beber e vendo, também que ele tomara toda a bebida, não pudemos mais nos conter; apesar de meus esforços, lágrimas corriam aos borbotões. (...) Apolodoro, que estivera soluçando o tempo todo, irrompeu num choro alto que transformou-nos a todos em covardes. (...)

E então, o próprio Sócrates apalpou as pernas e disse: 

- Quando chegar ao coração, será o fim. - (...) e disse aquelas que seriam as suas últimas palavras: 

- Críton, eu devo um galo a Esculápio, vais lembrar de pagar a dívida? 

- A dívida será paga - disse Críton. (...) 

Foi esse o fim de nosso amigo, a quem posso chamar sinceramente de o mais sábio, mais justo e melhor de todos que conheci."


Sócrates no leito de morte. Óleo sobre tela. 1787. Jacques Louis Daivid. Metropolitam Museum of Art. New York. EUA.


Fontes: Mundo dos Filósofos | Consciencia.org