segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Sócrates versus o arquiteto-contrutor

postado por Clara

“Tirai o andaime, o saibro, a caliça, a pedra, a massa e a argamassa, fica a forma e a arquitetura da forma.” Plotino


O livro “Eupalinos, o arquiteto” foi escrito em 1921 por Paul Valéry que encena, à maneira de Platão, um diálogo entre Sócrates e Fedro, dizendo ser o construir o mais completo de todos os atos, pois exige amor, meditação, obediência ao mais belo pensamento, “invenções de leis pela própria alma”.
Neste diálogo entre Fedro e Sócrates no limbo da eternidade, o primeiro tem saudades da vida (e dos seus aspectos de mundo sensível) e o segundo está satisfeito com sua morte (ama o mundo desencarnado).
Eupalinos, o arquiteto, era senhor de seu preceito. Nada negligenciava. Prescrevia o corte das tábuas no veio da madeira, a fim de que, interpostas entre a alvenaria e as vigas que nelas se apoiassem, impedissem a umidade de penetrar nas fibras, embebendo-as e apodrecendo-as. Prestava a mesma atenção a todos os pontos sensíveis do edifício. Dir-se-ia tratar-se de seu próprio corpo. Durante o trabalho da construção, raramente afastava-se do canteiro. Conhecia todas as suas pedras: cuidava da precisão de seu talhe, estudava minuciosamente todos os meios de evitar que as arestas se ferissem ou que a pureza dos encaixes se alterasse. Ordenava a prática da cinzeladura, a reserva dos calços, a execução de biséis no mármore dos adornos, dispensava o mais fino cuidado ao reboco que aplicava nos muros de simples pedra
De qualquer modo, em Eupalinos ou o arquiteto consta a afirmação de que construir exige obediência ao mais belo pensamento. Eupalinos ensina a Fedro o que isso significa: o ato de construir está impregnado de experiências pessoais, de sentimentos e, principalmente, de emoções:
“Escuta, Fedro, e olha esse pequeno templo que construí para a morada de Hermes a alguns passos daqui; se soubesses o que significou para mim! Onde o passante só enxerga uma graciosa capela, quatro colunas muito simples, imprimi nela a lembrança de um claro dia de minha vida. Esse templo, ninguém o sabe, é a imagem matemática de uma jovem de Corinto que, por felicidade, amei”.
Fedro relata ao mestre as idéias do construtor grego Eupalinos em várias passagens revela que, para Eupalinos, a invenção da forma não poderia preceder a invenção de sua própria construção. Sócrates e Platão propuseram que deviso sua inconstância e fugacidade da realidade sensível “a única realidade estável e verdadeira [é] a que encontramos no mundo das idéias. O Belo, as imagens, a realidade física e corpórea e mesmo as artes, servem como índices e meios através dos quais ascender ao mundo transcendente e ao Bem Supremo a serem contemplados. E nesta contemplação da Verdade e do Bem supremos se realiza o conhecimento verdadeiro, de ordem espiritual, que nos liberta do mundo de sombras da caverna, ao qual estamos aprisionados por nosso corpo.” (BRANDÃO).
Fedro contrapõe a esta doutrina socrática as concepções de Eupalinos de Megara, “construtor do templo” e do qual se tornara amigo. “Essa “construtividade”, essa atividade operativa, encetada no encontro do mundo das formas com o mundo da matéria e que trafega simultaneamente entre as idéias concebidas e a produção do real e do concreto, desafia a herança platônica, coloca seus limites e evidencia as possíveis fraudes filosóficas que o próprio Sócrates julga ter cometido. Eupalinos está para Sócrates tal como este estava para os sofistas, e a labilidade e falsidade acusada no conhecimento destes, agora parecem habitar o próprio conhecimento socrático. Todo o livro desenvolve este argumento num misto de melancolia e beleza, e abre várias sendas para realizarmos o questionamento do que seja a filosofia e do seu sentido, tais como a relação entre as palavras e a ação, o Belo e o Bem, o sensível e a razão. Interessam-nos aqui apenas alguns focos sobre os quais centrar a relação entre a atividade do arquiteto e construtor com a filosofia e os problemas a esta colocados. Não é contra a filosofia, tout court, que o arquiteto se dirige, mas contra um modo de filosofar. Há uma filosofia em Eupalinos, menos sistemática e totalizante, sem dúvida, mas mais humana e que não perde de vista a contingência e as possibilidades de nossas ações dentro da finitude em que elas se desenvolvem, à semelhança da filosofia renascentista em sua recusa da escolástica.” Cf. Carlos Antônio Leite Brandão. A filosofia do arquiteto 1
Porém, Sócrates acaba seduzido pela beleza e ordem engendradas na matéria, atribuídas por Fedro às obras de arquitetura que “cantam” do arquiteto Eupaninos. Sócrates, então, torna-se o arquiteto que não fora em vida, para decepção de Fedro. Mas na eternidade não havia lugar, topos, só o silêncio ou a reminiscência, que no platonismo, é
“lembrança de uma verdade que, contemplada pela alma no período de desencarnação (o entremeio que separa suas existências materiais), ao tornar à consciência se evidencia como o fundamento de todo o conhecimento humano” (HOUAISS).

“A admiração de Sócrates pela filosofia e pela relação com o tempo que emergem com a arquitetura se faz misturada à revisão de sua própria herança:  “Ah! Ai de mim! Um sábio que não deixa trás de si mais que o personagem de um falante, e diversas palavras imortalmente abandonadas... Que fiz senão dar a crer aos humanos que eu sabia muito mais que eles a respeito das coisas duvidosas?... A vida não se pode defender contra essas imortais agonias... Eu teria construído, cantado... Ó perda pensativa de meus dias! Que artista deixei morrer. Enquanto a facilidade de minhas famosas palavras me persegue e me aflige, eis que suscito para Eumênides minhas ações que não se realizaram, minhas obras não nascidas”]” Valery apud BRANDÃO.
 
"De Sócrates não ficaram obras, mas apenas palavras inventadas. O anti-Sócrates aqui se apresenta: é o construtor, detentor de uma outra espécie de filosofia. O mundo a ser encontrado – a divindade e a suprema idéia de Bem – não o é por pensamentos e palavras, mas por atos e combinação de atos, como os que presidem o trabalho do arquiteto. Só com atos nos colocamos no grande desígnio, nos inserimos no mundo e nos conhecemos e fazemos. E, de todos os atos," (BRANDÃO)

“o mais completo é o de construir. Uma obra exige amor, meditação, obediência ao teu mais belo pensamento, invenção de leis pela tua alma, e muitas outras coisas que ela extrai maravilhosamente de ti e que não suspeitavas possuir. Emana do mais íntimo de tua vida, sem contigo se confundir. Se dotada de pensamento, pressentiria tua existência, a qual jamais conseguiria provar ou conceber claramente”  Valery apud BRANDÃO.

“À serviço da vida humana, o construtor separa, escolhe e reorganiza as matérias num composto preciso para o corpo, prazeroso para a alma e resistente ao tempo, composto este que a filosofia de Sócrates é vista incapaz de atingir, uma vez que ela não articula o sensível, o inteligível e o ambiente dúplice em que transita nossa temporalidade.” Cf. Carlos Antônio Leite Brandão. A filosofia do arquiteto 1  
“Compreendem-se assim os valores maiores da arquitetura grega, como a geometria em que o espírito se aplica para conformar a matéria desorganizada do mundo e impor-lhe uma ordem perene que responda de forma equilibrada ao que nos constitui: o corpo, a alma e o tempo. Esta resposta arquitetônica é bem diversa da que hoje se manifesta em nossas construções e seria o caso de verificar a que visão de mundo estas nos conduzem. O livro de Paul Valéry mostra-nos bem como a arquitetura não é mera ilustração de uma filosofia, mas pode mesmo contradizê-la e servir de fonte para um outro modo de filosofar. Um mesmo templo grego, com suas formas geométricas a refinarem-se no tempo, conduz-nos tanto ao eterno retorno de Platão e de Sócrates quanto a uma filosofia da obra e do sensível que não se esgota na contemplação do mundo das idéias. A arquitetura, quando realmente está presente nas obras que fazemos, nos remete além dela própria: não à história da filosofia ou das idéias, mas às nossas dúvidas e certezas, ao nosso próprio ato de filosofar, ao horizonte onde a filosofia, a poesia e arte se encontram entre si e com nós mesmos: ou seja, ao nosso modo próprio de habitar o mundo, a cidade, a casa e a história.” Cf. Carlos Antônio Leite Brandão. A filosofia do arquiteto 1.


Referências
VALÉRY, Paul. Eupalinos ou O Arquiteto. Tradução Olga Reggiani. São Paulo: Editora 34, 1996, p. 175.
BRANDÃO. Antônio Leite Brandão. A filosofia do arquiteto 1. http://www.arq.ufmg.br/ahr/artigos/afilosofiaCACA.html

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