“Tirai o andaime, o saibro, a caliça, a
pedra, a massa e a argamassa, fica a forma e a arquitetura da forma.” Plotino
O livro “Eupalinos, o
arquiteto” foi escrito em 1921 por Paul Valéry que encena, à maneira de Platão,
um diálogo entre Sócrates e Fedro, dizendo ser o construir o mais completo de
todos os atos, pois exige amor, meditação, obediência ao mais belo pensamento,
“invenções de leis pela própria alma”.
Neste diálogo entre Fedro e Sócrates no limbo
da eternidade, o primeiro tem saudades da vida (e dos seus aspectos de mundo
sensível) e o segundo está satisfeito com sua morte (ama o mundo desencarnado).
Eupalinos, o
arquiteto, era senhor de seu preceito. Nada negligenciava. Prescrevia o corte
das tábuas no veio da madeira, a fim de que, interpostas entre a alvenaria e as
vigas que nelas se apoiassem, impedissem a umidade de penetrar nas fibras,
embebendo-as e apodrecendo-as. Prestava a mesma atenção a todos os pontos
sensíveis do edifício. Dir-se-ia tratar-se de seu próprio corpo. Durante o
trabalho da construção, raramente afastava-se do canteiro. Conhecia todas as
suas pedras: cuidava da precisão de seu talhe, estudava minuciosamente todos os
meios de evitar que as arestas se ferissem ou que a pureza dos encaixes se
alterasse. Ordenava a prática da cinzeladura, a reserva dos calços, a execução
de biséis no mármore dos adornos, dispensava o mais fino cuidado ao reboco que
aplicava nos muros de simples pedra
De qualquer modo, em Eupalinos ou o arquiteto consta a
afirmação de que construir exige obediência
ao mais belo pensamento. Eupalinos ensina a Fedro o que isso significa: o
ato de construir está impregnado de experiências pessoais, de sentimentos e,
principalmente, de emoções:
“Escuta, Fedro, e
olha esse pequeno templo que construí para a morada de Hermes a alguns passos
daqui; se soubesses o que significou para mim! Onde o passante só enxerga uma
graciosa capela, quatro colunas muito simples, imprimi nela a lembrança de um
claro dia de minha vida. Esse templo, ninguém o sabe, é a imagem matemática de
uma jovem de Corinto que, por felicidade, amei”.
Fedro relata ao mestre as idéias do
construtor grego Eupalinos em várias passagens revela que, para Eupalinos, a
invenção da forma não poderia preceder a invenção de sua própria construção. Sócrates
e Platão propuseram que deviso sua inconstância e fugacidade da realidade
sensível “a única realidade estável e verdadeira [é] a que encontramos no mundo
das idéias. O Belo, as imagens, a realidade física e corpórea e mesmo as artes,
servem como índices e meios através dos quais ascender ao mundo transcendente e
ao Bem Supremo a serem contemplados. E nesta contemplação da Verdade e do Bem
supremos se realiza o conhecimento verdadeiro, de ordem espiritual, que nos
liberta do mundo de sombras da caverna, ao qual estamos aprisionados por nosso
corpo.” (BRANDÃO).
Fedro contrapõe a esta doutrina
socrática as concepções de Eupalinos de Megara, “construtor do templo” e do
qual se tornara amigo. “Essa “construtividade”, essa atividade operativa,
encetada no encontro do mundo das formas com o mundo da matéria e que trafega
simultaneamente entre as idéias concebidas e a produção do real e do concreto,
desafia a herança platônica, coloca seus limites e evidencia as possíveis
fraudes filosóficas que o próprio Sócrates julga ter cometido. Eupalinos está
para Sócrates tal como este estava para os sofistas, e a labilidade e falsidade
acusada no conhecimento destes, agora parecem habitar o próprio conhecimento
socrático. Todo o livro desenvolve este argumento num misto de melancolia e
beleza, e abre várias sendas para realizarmos o questionamento do que seja a
filosofia e do seu sentido, tais como a relação entre as palavras e a ação, o
Belo e o Bem, o sensível e a razão. Interessam-nos aqui apenas alguns focos
sobre os quais centrar a relação entre a atividade do arquiteto e construtor
com a filosofia e os problemas a esta colocados. Não é contra a filosofia, tout
court, que o arquiteto se dirige, mas contra um modo de filosofar. Há uma
filosofia em Eupalinos, menos sistemática e totalizante, sem dúvida, mas mais
humana e que não perde de vista a contingência e as possibilidades de nossas
ações dentro da finitude em que elas se desenvolvem, à semelhança da filosofia
renascentista em sua recusa da escolástica.” Cf. Carlos
Antônio Leite Brandão. A filosofia do arquiteto 1
Porém, Sócrates acaba seduzido pela beleza e
ordem engendradas na matéria, atribuídas por Fedro às obras de arquitetura que
“cantam” do arquiteto Eupaninos. Sócrates, então, torna-se o arquiteto que não
fora em vida, para decepção de Fedro. Mas na eternidade não havia lugar, topos, só o silêncio ou a reminiscência,
que no platonismo,
é
“lembrança de uma verdade que, contemplada pela alma no
período de desencarnação (o entremeio que separa suas existências materiais),
ao tornar à consciência se evidencia como o fundamento de todo o conhecimento
humano” (HOUAISS).
“A admiração de Sócrates pela filosofia e
pela relação com o tempo que emergem com a arquitetura se faz misturada à
revisão de sua própria herança: “Ah!
Ai de mim! Um sábio que não deixa trás de si mais que o personagem de um
falante, e diversas palavras imortalmente abandonadas... Que fiz senão dar a
crer aos humanos que eu sabia muito mais que eles a respeito das coisas
duvidosas?... A vida não se pode defender contra essas imortais agonias... Eu
teria construído, cantado... Ó perda pensativa de meus dias! Que artista deixei
morrer. Enquanto a facilidade de minhas famosas palavras me persegue e me
aflige, eis que suscito para Eumênides minhas ações que não se realizaram,
minhas obras não nascidas”]” Valery apud BRANDÃO.
"De Sócrates não ficaram obras, mas apenas
palavras inventadas. O anti-Sócrates aqui se apresenta: é o construtor,
detentor de uma outra espécie de filosofia. O mundo a ser encontrado – a
divindade e a suprema idéia de Bem – não o é por pensamentos e palavras, mas
por atos e combinação de atos, como os que presidem o trabalho do arquiteto. Só
com atos nos colocamos no grande desígnio, nos inserimos no mundo e nos
conhecemos e fazemos. E, de todos os atos," (BRANDÃO)
“o mais completo é o de construir. Uma obra
exige amor, meditação, obediência ao teu mais belo pensamento, invenção de leis
pela tua alma, e muitas outras coisas que ela extrai maravilhosamente de ti e
que não suspeitavas possuir. Emana do mais íntimo de tua vida, sem contigo se
confundir. Se dotada de pensamento, pressentiria tua existência, a qual jamais
conseguiria provar ou conceber claramente” Valery apud BRANDÃO.
“À serviço da vida humana, o construtor
separa, escolhe e reorganiza as matérias num composto preciso para o corpo,
prazeroso para a alma e resistente ao tempo, composto este que a filosofia de
Sócrates é vista incapaz de atingir, uma vez que ela não articula o sensível, o
inteligível e o ambiente dúplice em que transita nossa temporalidade.” Cf. Carlos Antônio Leite Brandão. A filosofia do arquiteto 1
“Compreendem-se assim os valores maiores da
arquitetura grega, como a geometria em que o espírito se aplica para conformar
a matéria desorganizada do mundo e impor-lhe uma ordem perene que responda de
forma equilibrada ao que nos constitui: o corpo, a alma e o tempo. Esta
resposta arquitetônica é bem diversa da que hoje se manifesta em nossas
construções e seria o caso de verificar a que visão de mundo estas nos conduzem.
O livro de Paul Valéry mostra-nos bem como a arquitetura não é mera ilustração
de uma filosofia, mas pode mesmo contradizê-la e servir de fonte para um outro
modo de filosofar. Um mesmo templo grego, com suas formas geométricas a
refinarem-se no tempo, conduz-nos tanto ao eterno retorno de Platão e de
Sócrates quanto a uma filosofia da obra e do sensível que não se esgota na
contemplação do mundo das idéias. A arquitetura, quando realmente está presente
nas obras que fazemos, nos remete além dela própria: não à história da
filosofia ou das idéias, mas às nossas dúvidas e certezas, ao nosso próprio ato
de filosofar, ao horizonte onde a filosofia, a poesia e arte se encontram entre
si e com nós mesmos: ou seja, ao nosso modo próprio de habitar o mundo, a
cidade, a casa e a história.” Cf. Carlos Antônio Leite
Brandão. A filosofia do arquiteto 1.
Referências
VALÉRY, Paul.
Eupalinos ou O Arquiteto. Tradução Olga Reggiani. São Paulo: Editora 34, 1996,
p. 175.
BRANDÃO. Antônio
Leite Brandão. A filosofia do arquiteto 1. http://www.arq.ufmg.br/ahr/artigos/afilosofiaCACA.html
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