quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Lina e a sociedade do Pelô


Breve ensaio comentado sobre a região do Pelourinho abordando pontualmente a Ladeira da Misericórdia.
Postado por Matheus Mariani Coelho

A Ladeira da Misericórdia, situada em Salvador - Bahia, caracteriza um padrão típico de ocupação das cidades coloniais Portuguesas tal qual sua tipografia das fachadas.
A cidade de Salvador foi levantada sobre uma falha geológica chamada Falha de Salvador, e por conta disso estabelece uma divisão territorial, semelhante com a que vemos em Vitória, em Cidade Alta e Cidade Baixa. Esse modelo de ocupação, induzido pelo relevo, molda essa configuração de “cidade de ladeiras”. Dentre as diversas ladeiras de Salvador a da Misericórdia tem particular importância, pois se encontra na transição da Cidade Baixa para a Cidade Alta – cidade portuária e cidade residencial respectivamente – e desde os primórdios tomou-se como ponto de encontro e boemia.
Talvez a maior importância, portanto, da Ladeira da Misericordia tenha sido a de tutelar a sociabilidade nessa que era uma das mais antigas vias da cidade, e por alguns chamada praça.
O plano de recuperação proposto por Lina e sua equipe contemplava toda a região do Pelourinho, porem a Ladeira da Misericórdia figura como Projeto Piloto devido à intenção da arquiteta de usar o resultado da restauração como amostra do que se pretendia com o resto do projeto. Foi, contudo, uma tentativa de compreensão do território a partir da analise de aspectos relevantes na estrutura histórico-social que pretendia reerguer o sítio do Pelourinho. Arrisco dizer que essa não tenha sido apenas uma análise mas sim uma esquizoanálise arquitetônica onde Lina desmembra os indícios “clínico” rompendo com os pressupostos de categorização dos espaços e das pessoas.
Um conceito metodológico ainda é observado, porém não tão rígido e engessado. Como propõe Delleuze e Guattari, a esquizoanálise se torna eficaz justamente na quebra do paradigma linguístico onde o interventor não apenas associa os termos visuais e culturais à tecnologia mas também externaliza subjetividades.
Tomou-se a recuperação de aspectos particulares de cada edifício o ponto de partida para salvaguardar as singularidades de cada etapa de intervenção. Não privara, o todo, de uma coerência contextual, conseguindo, por conceito, recontar a história do conjunto enquanto sua materialidade histórica tornando possível reconhecer uma matriz quase literária, tanto ideológica quanto social. O que a Lina nos diz com o projeto é que mesmo baseando-se em intervenções isoladas – edifício a edifício -, as interações sociais são mantidas no nível de espontaneidade assim como ocorreu na concepção original do espaço, ou seja, edifício por edifício.
O resultado almejado só é conseguido com algumas práticas elucubradas de imersão, marca registrada de Lina, e que justifica plenamente suas intenções e materializações. Ela se afunda no labirinto das ladeiras, não obstinada a achar a saída, parece querer se perder entre os becos e ali ficar.
A ponte conceitual: Lina-Lelé-Nervi
Transpondo a ótica conceitual – a esse tempo vencida com facilidade por Lina -, passa a valer o caráter material da intervenção. A materialização do conceito. Para tal tarefa Lina evoca para ajuda-la João Filgueiras Lima (Lelé), o qual, era sabido, desenvolvera aclamados conceitos e métodos de produção de estruturas pré-fabricadas. Com citações as técnicas de Nervi – técnicas-chave na utilização de argamassa armada -  o convite é deferido e aceito de imediato por Lelé
Lina propõe a comunhão entre projeto arquitetônico e projeto estrutural e via com bons olhos a possibilidade da construção modular sistematizada e de padrões repetitivos. Pretendia, com o emprego das técnicas modulares, baixar o custo das obras e domar a estima da especulação imobiliária, manter os moradores no local e permitir a sustentação e o desenvolvimento de novas práticas subsidiárias dos mesmos.
Quanto às práticas projetuais que mesclavam arquitetura e estrutura Lina disse:“… A estrutura de um edifício é elevada ao nível da poesia, como parte da estética. Não há nenhuma diferença. Um arquiteto deve projetar a estrutura como projeta arquitetura, no sentido doméstico da palavra.”Quanto a tipificação das intervenções, afirmava ela, desse modo, fazer a manutenção de uma identidade contextual: “o padrão é a lei basilar da natureza. Não aceitar o ‘standard’ significa assumir uma posição de soberba, um individualismo fictício que não tem nada a ver com a ‘personalidade’, a marca sagrada existente em cada indivíduo e que não depende do ‘standard”.
Outra importante fala de Lina diz respeito ao peso que dava às questões sociais considerando sua arquitetura de posse daquele que a ocupa, numa quase utopia social chega a eximir a arquitetura de seu valor artístico: “… Vejo a arquitetura como serviço coletivo e como poesia. Alguma coisa que nada tem a ver com arte.”.
A criticidade do restauro
Lina entendia o restauro como um aprimoramento do valor histórico. Abstém-se da nostalgia, saudosismo e romantismo na hora de avaliar as ruínas e consegue defrontar o sítio parcialmente destruído sem idealizar uma recomposição ripristina. “A palavra restauração lembra, em geral, as tristes restaurações. (…) Em geral, a restauração é a restituição a um estado primitivo de tempo, de lugar, de estilo. Depois da Carta de Veneza, de 1965, as coisas melhoraram, mas aquele marco de ranço de uma obra restaurada sempre continua. É muito difícil não perceber ou sentir isso entrando num restauro. O que estamos procurando (…) é justamente um marco moderno (…). Esse sistema de pré-moldados, perfeitamente distinto da parte histórica, é denunciado pela sua estrutura e pelo tempo atual”. (Lina, Revista Projeto 1987)
Confrontando as antigas práticas de restauro e a visão proposta pela Carta de Veneza, Lina ataca claramente a posição defendida por Viollet-le-Duc para quem“restaurar um edifício é restabelecê-lo em um estado completo que pode não ter existido nunca em um dado momento”.
Lina mostra, conscientemente, sua concordância com as idéias de Camillo Boito e Gustavo Giovannoni quanto ao restauro histórico-filosófico que se desdobra no “restauro científico”, que mescla a análise arqueológica, documentária e de todos os indícios que transmitam o mais próximo possível do ambiente original.
“A menção à Carta de Veneza é indicação de que está ciente da ampliação da noção de patrimônio, que ultrapassa o limite do monumento, para incluir a produção arquitetônica ordinária, comum, conforme o costume. Uma ampliação que passa a considerar dignas de interesse de preservação as edificações mais recentes, o conjunto urbano, seu traçado, suas relações entre volume construído e espaços abertos, além do próprio ambiente natural. Essa maior extensão do acervo dos bens patrimoniais contribui para a crise metodológica que atinge o restauro científico, abrindo caminho para a revisão conduzida pelo restauro crítico, o qual pressupõe um contexto de intervenção e não apenas intervenções pontuais.”(Artigo Território de Contato, Revista AU, outubro 2007).
Lina propõe a estruturação de um Centro Histórico verdadeiro, ligado as suas origens e não apenas a um resgate físico que transformaria o Pelourinho em uma mercadoria, uma alegoria, um cenário “pra inglês ver”. Foge do espetáculo e da simulação.
Infelizmente, à frente referiremo-nos a passagem que dita o rompimento com o resguardo conceitual proposto. Vem-se, então, o abando do projeto e a mediocridade da política social brasileira.
Do Projeto
Subseqüente a essa vasta introdução ao conceito de Lina, referencias as intervenções devem ser feitas, tal como o plano geral do projeto.
Com o planejamento feito e apartada pelas técnicas dos pré-fabricados de Lelé, as intervenções iniciam-se em 1986 e tecem uma rápida e econômica recuperação do sítio. Há quem submeta à criticas negativas o emprego de pré-fabricados na restauração de um sitio histórico, mas nesse caso a intenção de baratear a obra servia de argumento para  manutenção da população que residia ali ao final das obras.
Marcelo Ferraz, parceiro de Lina no projeto de restauro, didaticamente, explicou a metodologia tomada pelo grupo de arquitetos: “… o objetivo maior era manter aquela população que lá vivia – ou grande parte dela – em condições dignas de habitabilidade sem criar um êxodo natural, com o aumento do valor imobiliário, e nem forçado, como saneamento social deliberado. Nosso projeto, baseado em um levantamento sócio-econômico de todas as famílias, previa uma logística de efeito dominó. Ou seja, recuperávamos uma ruína abandonada transformando-a em moradia plurifamiliar – alguns apartamentos em cada casarão antigo recuperado –, transferindo para ali os moradores vizinhos das casas degradadas.
Em seguida partíamos para a recuperação dessas casas degradadas já desocupadas, para trazer outras famílias, e assim por adiante. Em todos os casos, o térreo dessas casas deveria conter um pequeno comércio ou serviço, a ser tocado pelos próprios moradores. Chegou-se ali a levantar, através de pesquisas, demandas de usos e capacidade de instalação de equipamentos comerciais e públicos para atender a estes usos. O cadastro de cada imóvel ou ruína era primoroso e, junto ao programa pré-estabelecido do futuro uso e definição das famílias que iriam ocupar cada imóvel, é que partíamos para o projeto arquitetônico.”.
Nessa passagem ele cita a intenção de promover atividades comerciais na vida dos moradores, reforçando a idéia da auto-gestão do espaço e a tentativa de não proporcionar a apropriação indevida do turismo de cenário. A frente diz também que só será alcançado um bom ambiente turístico se primeiramente o espaço for coerente com suas raízes e suas realidades “…não é criando “Disneylândias” do passado colonial que sairemos do estágio primário em que nos encontramos quando se trata de conservação de nossas cidades.”.
A escolha da Ladeira da Misericórdia como projeto piloto foi estratégica. No sítio podia-se encontrar terrenos baldios, muralhas de contenção, ruínas dos séculos XVII, XIX e XX e boa densidade de vegetação. Sem contar a exuberante vista para o mar e o aspecto da grandiosidade simbólica da ladeira em questão.
Do programa
A proposição das edificações seguiu das residências aos comércios – neste último, a ênfase seria nos estabelecimentos culinarísticos -. Compunham o conjunto: um restaurante, um bar, três casarões a serem transformados em 8 ou 9 apartamentos com 3 pontos comerciais em seus térreos.
A reestruturação das ruínas foi solucionada com os já citados elementos pré-fabricados de Lelé; contrafortes de concreto de linguagem contemporânea que se inseriam como elementos da fachada.

Desde o começo Lina descartou a idéia de “revitalização”, dizia ela que vida ali não faltava: “… prostituição, bebida, drogas e crime, quer coisa mais viva?”. A idéia então seria de trazer dignidade aos moradores. Adotando princípios da Carta de Veneza propõem-se a transformar o estado de abandono, recuperando-o e expondo, de forma a trazer integridade social, o passo histórico de satisfações da comunidade.

Em alguns momentos, justamente quando se propõe gerir “dignidade” à população local, observo certa dose de prepotência arquitetônica e sua cisma antropológica. Eu implicaria mais com isso não fosse a sua proposição imersiva. De fato foi apenas um deslize conceitual. Dignidade pressupõe uma série de valores rígidos e mecanizados, lógicos e idealizados, bem longe da proposta esquizo.

Continuemos…

Com as mudanças no setor administrativo no governo bahiano, um recorrente problema político-administrativo veio a cerrar o andamento do projeto. Em certa ocasião Caetano Veloso disse: “Aqui tudo parece que é ainda construção, mas já é ruína”, se referindo ao constante abandono e retomada de posições de intervenção. O projeto, outrora coerente e conciso, deu passagem à “boa vontade” do poder publico que mais tarde viria a esfaquear e sangrar até a morte os conceitos originais de Lina e seu grupo. Ao final  tudo tinha sido esquecido e não parecia sequer ter existido.
Em um artigo publicado no site www.vitruvius.com.br, Marcelo Ferraz comenta a louvável tentativa do governo bahiano, no inicio dos anos 90, de retomar os trabalhos de restauração, porem submete a uma analise mais critica e traça alguns erros, a seu ver, no desdobrar da intervenção.
Pontos de surpresa
Inicialmente, desde o levantamento, foi proposto o uso dos fundos de quadra como quintais coletivos. Os terrenos tinha privilegiada configuração de modo que permitiam trabalhar consideráveis áreas livres ao fundo das edificações. Uma vez que cada casa seria ocupada por três ou quatro famílias, os quintais se mostravam como áreas comuns e grandes zonas verdes incrustadas no centro urbano. Um refúgio para quem visitara o complexo histórico. Permeando por arcos da fachada, passando por uma antessala (o térreo de comercio), adentrando a um jardim improvável e se surpreendendo com a exuberância dessa desanexa lógica urbana.
Disse Marcelo Ferraz: “Um exemplar foi executado e com grande sucesso: a Casa e Restaurante do Benin. Do Largo do Pelourinho, de urbanismo “seco”, ninguém poderia imaginar que, cruzando poucos metros, atravessando uma portada, poderia encontrar coqueiros altos, trepadeiras e até uma cascata de água. E assim deveriam ser todos os miolos de quadra, de jardins “secretos”.”.

Essa lógica de surpresas, presente nas cidades coloniais portuguesas, foi banalizada, dissimulada com a implantação de praças nas configurações cenográficas mais pra shoppings do que pra uma cidade de personalidade. Mais que esse erro de maquiar o espaço, onde havia um vazio original da ruína criou-se uma nova entrada, como uma porta contemporânea para um objeto antigo. Em voga está o museu urbano e sua moldura contemporânea. Uma confusão criada que desvirtua a riqueza do espaço e seu traçado, motivo de seu tombamento. Essa dissimulação confunde e desorienta o turista que não mais reconhece o que é original do traçado urbano e a estética original do colono português.
Nesta seqüência de equívocos, reforçando o “falso antigo”, encontramos as fachadas frontais reproduzidas nos fundos dos casarões induzindo o visitante a pensar que a fachada do fundo pode ter sido a frente de uma casa que se abria para aquela praça ou quintal.
A Ladeira-de-Todas-as-Cores

Em mais outra tomada cenográfica, uma vasta paleta de cores ocre foi aplicada as fachadas tentando reproduzir e individualizar as edificações, coisa que nunca tinha ocorrido. A branca pintura ocre original chamada “leite de cal”, foi substituída por tecnológicas tintas acrílicas ou a base de látex que espalharam uma contagiante onda de renovação o tal “Efeito Pelourinho” com grande sucesso de marketing de recuperação. A utilização de técnicas e matérias caros elevou o preço dos imóveis e tornou difícil a possibilidade da retomada dessas propriedades pelos originais moradores, que diga-se de passagem, foram removidos do local desde a retomada do processo de restauração.
Do plano de uso
Contrario ao que havia sido planejado, os moradores foram convidados a deixar suas moradias e posteriormente foram locados em faixas periféricas da metrópole para que as casas fossem restauradas. Várias casas foram recuperadas sem plano de uso definido correndo o risco de se transformarem em equipamentos culturais como a maioria das obras ociosas e onerosas provenientes do restauro. Por exemplo, residências viraram escolas sem equipamentos de escola. Fez-se uma espécie de “limpeza” social para o turista. Esvaziaram o centro histórico de seus reais protagonistas e sugaram o valor e a alma do Pelourinho.
Não foi proposto sistemas de atividades para suprir as reais necessidades do espaço do Pelourinho, tornando a região o menos auto-suficiente possível. O grau de rentabilidade turística era tanta que brotaram ali cubículos de artesanato fabricado em São Paulo, bares e botecos semelhantes a de qualquer rodoviária do país. Nos mostra o alto grau de despreocupação no estudo e na analise das questões sócio-urbanas ante a intervenção. O “Pelô” foi surrado pelo turismo global e foi varrida de sua alma 400 anos de história.
Ferraz suplica a consciência dos órgãos políticos brasileiros na hora do trato com o patrimônio histórico, cobra responsabilidade com a sociedade que geriu por tempos as ruínas outrora abandonadas pelo poder público.
De fato essas são questões referentes ao complexo de bastardia brasileiro e o ideal de exportação tanto dos patrimônios materiais quanto imateriais. Vemos o Pelourinho vendendo a imagem do folclore brasileiro como quem vende celular japonês. É possível, inclusive, se deparar com uma inversão de papeis, flagrar o criolo na banca de eletrônicos e o japonês vendendo berimbau.
Se é certo refazer sem restaurar e designar uma cultura específica que estagnou a anos, temos cumprido o objetivo. Confundiram e comprimiram todo valor imaterial em função das matérias visuais, apenas visuais. Confeccionaram uma maquete do labirinto e como um corpo de prova, num laboratório, numa caixa de vidro vedada de qualquer influência, como a pena de Boyle, cientificamente estabeleceram critérios “gringamente” palpáveis. Não foi um ato de intervenção, foi um ato de interferência.
De fato a Lina não é maior que o Pelô mas foi ela quem tentou se igualar à seu valor ou pelo menos entende-lo. O Pelô não é Bahia. Não pode ser subordinado a uma divisão política do território. O Pelô é o Pelô, esquizofrênico e único; e a ladeira clama por Misericórdia.

Referências:

DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix - O Anti-Édipo - 1972
Artigo Revista AU - Território de contato: ladeira da misericórida, salvador, Bahia; Eneida de Almeia, Luis Octávio da Silva, Marta Bogéa e Yopanan C.P. Rebello

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